domingo, 27 de dezembro de 2020

Coltrane, Luis Fernando Veríssimo,OESP

 Luis Fernando Verissimo, O Estado de S.Paulo

27 de dezembro de 2020 | 03h00

Dizem que quando ouviu John Coltrane pela primeira vez, Sonny Rollins, o saxofonista indiscutível da época, entrou em depressão. Interrompeu sua própria carreira e passou a treinar diariamente no meio de uma das pontes de Nova York, competindo com o ruído do trânsito e enfrentando ventos e nevascas, até se sentir capaz de voltar do autoexílio – ou até se resignar à existência de Coltrane. 

Rollins continua em ação, que eu saiba, Coltrane morreu em 1967. Durante anos, tocando em conjuntos como o lendário quinteto do Miles Davis – inclusive na gravação histórica do Kind of Blue – e depois solo, Coltrane foi a referência no seu instrumento, no jazz. Ele disse certa vez que não havia ideia ou sentimento que não se pudesse expressar num sax tenor, e dedicou-se a explorar os limites do instrumento que mais se parece com a voz humana.

Segundo alguns, a exploração de Coltrane foi longe demais. A combinação de destreza e fartura criativa acabava produzindo os chamados lençóis de som sem espaço para o raciocínio, que dificultavam a audição e influenciaram todos os sax tenores desde então, poucos com o mesmo talento de Coltrane. Que, em meio aos excessos, produziu obras-primas inesquecíveis. 

Como aconteceu com outros na época e no mesmo meio, os excessos – no caso de Coltrane, a bebida e a heroína – derrubaram o músico, que buscou seu próprio autoexílio, até poder voltar, renovado, para sua fase mais criativa, na qual se misturariam religiosidade, misticismo e grande jazz. Esqueça títulos de álbuns inspiracionais como Um Supremo Amor e concentre-se no grande jazz. 

O sax tem uma vida relativamente curta como instrumento de jazz. Nos desfiles de rua em New Orleans, o que ia na linha de frente era o clarinete. O aparecimento do sax em todas as suas versões nas bandas de jazz dos anos 20 coincidiu com o aparecimento de grandes solistas, cada um inaugurando um legado para o som do seu sax. Coltrane deixou um legado difícil de reproduzir. O som do seu sax talvez seja a forma final que o instrumento pode atingir no jazz, deste lado da coerência. Mas quem quer coerência num gênio? 

*É ESCRITOR, CRONISTA, TRADUTOR,  


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