Pergunte a qualquer brasileiro acima dos 40 anos se o nome Pierre Cardin soa familiar. A resposta, certamente, será sim, e ele provavelmente se lembrará de quando, em meio a trocas de moeda, hiperinflação e escândalos dos 1980, mantinha o desejo secreto de ganhar neste dezembro natalino um pacote com três cuecas cavadas nas quais se via o logo do estilista costurado.
É verdade que a lembrança não resumirá a importância deste que é considerado o pai do prêt-à-porter –logo, da democratização da moda e precursor do fast fashion–, tampouco ilustrará o pioneirismo do designer mais demonizado por seus pares na segunda metade do século 20.
Provará, porém, que a morte de Pierre Cardin nesta terça-feira, de causas não divulgadas por sua família, num hospital nos arredores de Paris, apaga uma fresta de luz na memória afetiva da costura nacional.
Ele pode até ter sido o homem que imaginou a era espacial nas passarelas dos anos 1960, ao lado dos também franceses André Courréges, morto em 2016, e Paco Rabbane, com uma série de vestidinhos em silhueta “A”, recortes geométricos e tinta colorida. Mas dar início à estética space age na música, no cinema e até no figurino das aeromoças, antes de o homem pisar na Lua, é só detalhe.
Cardin tirou das classes abastadas europeias a exclusividade de consumir moda feita com um esmero até então restrito à alta-costura. Arriscou a ideia no final dos anos 1950, já com uma casa de moda estabelecida, mas um rosto ainda lembrado pela elite de quando era assistente nas mesas de corte de Jeanne Paquin, Elsa Schiaparelli e Christian Dior.
Ao mandar às favas a federação de costura local e vender panos menos rebuscados, com grade de tamanhos, na loja de departamentos Printemps, foi expulso daquela rodinha, mas fez fortuna, exportou a ideia para o mundo e acabou dobrando o círculo de narizes empinados.
Se hoje qualquer marca desfila coleções sazonais de prêt-à-porter, é porque esse veneziano que saiu ainda criança de sua Itália natal ao lado dos pais, fazendeiros falidos em busca de nova vida, tinha menos apreço pelo romantismo francês e mais pela revolução dos costumes da arquitetura.
Quando Dior lançou a jaqueta bar, peça-chave do new look, não tirou só a França da morbidez estética deixada pela guerra naquele ano de 1947. Ele também abriu os olhos de seu braço direito com boa mão para a alfaiataria, conquistada na adolescência enfiada num ateliê da cidade de Saint-Étienne, para o fato de que o corpo pode se transmutar por meio dos tecidos.
Sozinho, o estilista criou roupas unissex e, não por menos, contratou nos anos 1970 um jovem assistente de nome Jean Paul Gaultier, com um senso estético desgarrado de gêneros similar ao dele.
Logo apostou também na moda masculina, que não aceitava bem incursões de costureiros na casta dos alfaiates, mas teve de engolir ver nos 1960 os costumes sem colarinho virarem febre em fotos de um quarteto engomado de Liverpool. O estilo mod, influenciado pelos Beatles, tem os dedos de Cardin.
É que embora ele tenha sido prestigiado por escancarar as portas do mercado asiático —a bem da verdade, e ao contrário do que muitos críticos costumam dizer, uma ideia que já havia dado certo no negócio do antigo chefe, Christian Dior— e criado um padrão de desfiles intermináveis composto por centenas de looks, democracia nunca foi um valor muito caro à moda.
A partir do momento em que seu nome passou a ser licenciado para todo tipo de produto, muitas vezes sem o filtro de qualidade de outrora e com parceiros de gosto duvidoso, o logo escrito com linhas arredondadas tal como eram suas criações mais famosas se popularizou demais.
As passarelas das semanas de moda e a casa própria de alta-costura passaram a não segurar mais o mistério, fator primordial no chamado desejo de marca. É possível dizer que Cardin foi cobaia do modelo de negócio mais em voga da atualidade, as “collabs”, quando uma grife chama um artista ou faz parceria com outra etiqueta para lançar produtos que misturem suas referências.
Esse tipo de associação é conduzida, nos dias de hoje, com olhos de lince pelos grupos de moda, temerosos de transformar suas etiquetas em commodities sem grande valor.
Ainda que exposições, documentários e livros explorem, com razão e justa condescendência, a trajetória ímpar do "couturier", sua marca acabou virando uma espécie de Romero Britto da costura.
Fácil de copiar, fácil de ver nas montanhas de contêineres de roupas que cruzam os oceanos e difícil de reconhecer pelo traço original, sua costura perdeu o rumo —mesmo que, em entrevistas, Cardin já tenha insistido que sua mítica se apoiava na moda inconfundível, um valor supostamente faltante em contemporâneos como Yves Saint Laurent, morto em 2008.
Talvez tivesse razão, mas nem de longe as calças jeans costuradas por aqui nos 1980, assim como a camisaria, os acessórios e, claro, as cuecas desejadas por brasileiros muito antes da Calvin Klein tomar o posto da roupa íntima gringa de luxo no imaginário local, guardam relação com o passado glorioso alinhavado por sua genialidade. Essa, sim, inquestionável.
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