domingo, 20 de dezembro de 2020

As escolas privadas e filantrópicas, como as ligadas a igrejas, deveriam receber mais verbas do Fundeb? NÃO

 Daniel Cara

Professor de economia e política educacional da Faculdade de Educação da USP

O Brasil tem tradição em transferir tarefas educacionais a entidades privadas. Isso remonta à própria colonização, cuja empreitada de instrução coube aos jesuítas. Apenas na segunda metade do século 20 a educação pública teve expansão massiva.

Embora a Constituição de 1988 afirme o princípio da destinação de dinheiro público para a escola pública, ela prevê excepcionalidades, como as relacionadas à falta de vagas.

Hoje, na etapa da educação infantil e nas modalidades da educação especial e da educação do campo, os governos têm firmado parcerias com escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas —desde que comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação, conforme determina o artigo 213 da Constituição.

Em 2019, segundo estudo do pesquisador João Marcelo Borges (FGV), a partir de dados da Receita Federal, os estabelecimentos comunitários, confessionais e filantrópicos receberam R$ 6,7 bilhões do poder público por meio de convênios.

Na cidade de São Paulo, os “Dados gerenciais da Secretaria Municipal de Educação” (set.2020) informam que 310 mil matrículas são ofertadas em centros de educação infantil parceiros. Assim, das 2.840 creches mantidas com recursos públicos, 2.470 (87%) são da rede conveniada.

Diante desse quadro, por que a entrada dos estabelecimentos conveniados no ensino fundamental e no ensino médio foi vetada na regulamentação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)? Há quatro motivos principais.

Em primeiro lugar, é inconstitucional. A Carta de 1988 afirma que parcerias podem ser firmadas quando não há oferta de matrículas públicas. E este não é o caso do ensino fundamental e do ensino médio.

Em segundo lugar, não há o devido controle de qualidade dos serviços educacionais prestados, tampouco da gestão dos recursos. Por serem entidades privadas, regular os convênios é tarefa complexa. Ainda que não seja regra, são comuns as denúncias de exploração de profissionais, que atuam sob péssimas condições de trabalho.

Em terceiro lugar, o Censo Escolar informa que apenas 0,56% das matrículas do ensino fundamental e 0,16% no ensino médio são conveniadas. Ou seja, a proposta de parlamentares de conveniar 10% das matrículas nessas duas etapas resultaria em gravíssimo escoamento de recursos, na ordem de R$ 15,35 bilhões, segundo estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). Ademais, conveniar nessas etapas não faz sentido: as escolas públicas já atendem a 82% dos alunos no ensino fundamental e a 87,4% do ensino médio. São essas unidades escolares, portanto, que precisam de mais recursos.

Em quarto lugar, há uma questão de princípio: a escola pública pertence a todas e todos e deve ser a escola de todas e todos. As excepcionalidades devem ser transitórias —obviamente, sem prejudicar alunos já matriculados e profissionais da educação que trabalham em estabelecimentos conveniados.

Assim, o Congresso Nacional, graças à pressão popular e da comunidade educacional, acertou em não permitir a sangria de recursos públicos do Fundeb com conveniamentos no ensino fundamental e no ensino médio.


SIM

Ademar Batista Pereira

Educador, professor de matemática e pós-graduado em administração, gestão de pessoas e psicologia do trabalho, é presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep)

A resposta para a pergunta do título deste artigo vem da própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, que preconiza que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (III) pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”. Portanto, se o Fundeb deve ou não destinar mais recursos para escolas privadas, a resposta é sim.

Em nenhum momento foi feita uma opção absoluta pelo formato de fornecimento de educação pela via estatal exclusiva. A obrigação é pública, o ensino tem caráter e objetivo público, mas a forma de sua prestação ao cidadão-aluno não é obrigatoriamente estatal, tendo o legislador constituinte optado por estabelecer uma sábia simbiose entre os entes estatais e os entes privados para a realização dessa tarefa.

Se o objetivo dos recursos do Fundeb é aprimorar, ampliar e democratizar o acesso à educação básica, nada impede que sejam instituídas parcerias com a rede privada para atender à demanda crescente por educação básica de qualidade —que, aliás, é um debate urgente a ser feito no Brasil, principalmente em um cenário onde o desempenho dos alunos da educação básica das escolas privadas é muito superior ao das escolas públicas.

Considerando que temos 12 milhões de estudantes nas escolas estatais e 2,5 milhões nas instituições privadas, se o valor estimado de investimento do governo federal, aproximadamente R$ 162 bilhões por ano, fosse aplicado em um projeto de voucher educacional para os estudantes do ensino fundamental 1 do Brasil, teríamos um investimento de R$ 11 mil por aluno/ano.

Certamente essa proposta resolveria a qualidade da educação brasileira, pois a escola privada, atualmente, tem um custo médio menor que R$ 11 mil por aluno/ano e apresenta resultados de primeiro mundo. Segundo a última avaliação do Pisa 2018, o ensino privado brasileiro obteve resultados melhores que a Espanha em leitura e ciências; em matemática, é praticamente igual.

Evidentemente que o Fundeb é utilizado para ajudar no financiamento de todas as escolas estatais, da educação infantil ao ensino médio. Porém, o problema da qualidade de aprendizado da educação brasileira está na primeira etapa do ensino fundamental, onde a metade ou mais não apresenta aprendizado adequado ao final dessa etapa.

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Ou seja, o problema da educação básica brasileira está em não ensinar o necessário às crianças até os dez anos. Por outro lado, no orçamento da educação básica temos os recursos próprios dos estados e municípios; portanto, estamos falando de muito mais do que R$ 162 bilhões.

A pandemia demonstrou com muita clareza a dificuldade em lidar com a escola estatal e a capacidade de reinvenção das escolas privadas com seus gestores e educadores. Nesse sentido, precisamos em algum momento enfrentar a discussão da qualidade da educação básica brasileira, sendo este momento uma ótima oportunidade.

Ao rejeitar essa importante alteração na lei do Fundeb, entendo que o Parlamento pode ter desperdiçado uma grande oportunidade de investir os recursos da educação em prol da expansão e da melhoria da qualidade da educação ofertada a todos os brasileiros.

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