Fui precipitado e otimista demais quando escrevi para a Folha (19/12) que nunca mais seria admitido o argumento da “legítima defesa da honra” no Brasil.
Na mesma semana da morte de Doca Street, quando se rememorou a condenação do assassino de Ângela Diniz, em Búzios, considerada um marco de evolução social, foi publicada decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que, na prática, autoriza a absolvição do réu que matar a mulher em defesa da honra ferida.
O homem beneficiário do habeas corpus (concedido em setembro) tentou matar a mulher a facadas, na saída de um culto religioso, por acreditar que estava sendo traído. Foi absolvido pelos jurados de Nova Era, pequeno município de Minas Gerais com 17.607 habitantes (IBGE/2018), apesar da prova incontroversa do crime e da própria confissão.
O STF restaurou a absolvição original, anulada pelo Tribunal de Justiça mineiro.
O voto do ministro Marco Aurélio é curto: o jurado pode absolver o réu “com base na livre convicção e independentemente das teses veiculadas, considerados elementos não jurídicos e extraprocessuais”. Dias Toffoli e Rosa Weber acompanharam o relator.
Vigorava o princípio de que a decisão dos jurados, mesmo sendo soberana, poderia ser anulada (uma única vez pelo mesmo motivo) por instâncias superiores se fosse manifestamente contrária à prova dos autos. Foi o que aconteceu no caso Ângela Diniz e Doca Street.
Esta soberania controlada pela prova do processo é capaz de reduzir a incidência de erros no julgamento de crimes dolosos contra a vida, proferido por pessoas comuns.
Segundo a maioria dos ministros, a reforma legislativa de 2008, que alterou a sistemática de deliberação do Tribunal do Júri, instituindo o quesito genérico de absolvição, determina a mudança jurisprudencial.
A decisão do STF confere aos jurados uma autorização ilimitada de clemência, e clemência é coisa de monarquia absoluta, não de regime republicano. O Tribunal do Júri, essencialmente defeituoso e supostamente democrático, poderá decretar a inocência de qualquer réu, independentemente da torpeza ou da violência praticada. Não faz sentido: a regra não vale (ainda bem) para a condenação contrária à prova dos autos.
As consequências podem ser monstruosas, beneficiando, além de maridos ciumentos, policiais que atiram primeiro e perguntam depois, matadores profissionais, mandantes poderosos, milicianos e exterminadores de “bandido”.
Votaram contra a mudança jurisprudencial e foram derrotados os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
Em seu voto, Barroso lamenta: “Presidente, sinceramente, não gostaria de viver em um país em que os homens pudessem matar suas mulheres por ciúmes e sair impunes”.
O tema será submetido ao plenário do Supremo em julgamento de outro processo oriundo de Minas Gerais (recurso extraordinário com repercussão geral de questão constitucional), distribuído a Gilmar Mendes.
Se o entendimento da Primeira Turma prevalecer, mais uma modalidade de licença para matar estará instituída no país de Jair Bolsonaro, terra marcada por índices desconcertantes de homicídio, letalidade policial extrema e racismo.
Em centros urbanos onde o feminismo e a imprensa livre se fazem presentes é provável que a tese da “legítima defesa da honra” permaneça adormecida.
A decisão do STF, porém, afeta o chamado Brasil profundo, onde machismo e ignorância são hegemônicos.
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