Sociedade derrotada, tempo morto; a história passou e nós ficamos
Talvez nem todos saibam —ou se lembrem—, mas éramos mais felizes quando subdesenvolvidos. Havia um grande debate sobre como superar essa condição. E se o debate estava dado era porque, mínima que fosse, a história nos deixava uma brecha para passarmos ao outro lado, para perdermos o prefixo “sub”.
Em nossa trajetória de país independente mudamos muito. Estivemos entre as economias que mais cresceram no século 20 e por pouco não superamos nossa miséria —isso no início da década de 1960, quando a brecha era maior. Mas veio o golpe de 1964 e o futuro foi interrompido —naquele momento ninguém sabia que se tratava de um cancelamento, não de uma interrupção.
A ficha demorou a cair e quem intuiu primeiro foi Chico Buarque em seu romance “Estorvo”, lançado em 1991. O desastre que nos aguardava na próxima curva da história estava cifrado na forma do livro: a entrada do Brasil no mundo globalizado e homogeneizado pela ideologia neoliberal, sem nenhum tipo de mediação para a condição de país periférico. Sem horizonte de superação do atraso, a realidade violenta e injusta do país se apresentava como a realização final de nosso processo de formação.
“Estorvo” foi decifrado pelo crítico Roberto Schwarz no ano de seu lançamento, que de forma certeira perguntou-se: “Estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência?”. Naquele momento, ainda muitos disseram que não; que o crítico era pessimista, marxista jurássico etc.
Hoje, quando o esgoto miliciano sobe até diversas esferas do Estado, a resposta só pode ser sim.
Eleições diretas, Constituição de 1988, fim da inflação, privatizações, Bolsa Família. E permanecemos na mesma sociedade estorvada.
Chico continuou investigando de forma crítica a sociedade brasileira, o que explica ter se tornado uma espécie de “inimigo público número 1” dos estratos conservadores do país, que se radicalizaram a partir de 2014 —não por acaso o presidente Jair Bolsonaro se recusou a assinar o Prêmio Camões de Literatura, recebido pelo artista em 2019. Alguns exemplos dessa investigação: a canção “Caravanas”, retrato vertiginoso de um Brasil arcaico que se reinventa sem parar; em tom irônico, o romance “Essa Gente” escancara o ridículo, mas também a violência da “gente ordeira e virtuosa”, e deixa os setores progressistas ainda embalados por antigas utopias entre o exílio e o suicídio, uma vez que bolhas artificiais de civilidade já não são mais viáveis.
Antonio Candido, em ensaio de 1970, trata das duas principais noções de país que tivemos: durante o século 19 e início do 20 predominava a ideia de “país novo”, sendo substituída pela de “país subdesenvolvido” com a Revolução de 1930. Se na primeira há uma imagem amena do atraso, prometendo um grande futuro pela frente, na segunda surge a percepção catastrófica do atraso, e a necessidade de intervenção.
Minha proposta é que a sociedade sem forma intuída por Chico —e portanto a nossa— inaugure uma terceira noção, que chamei de “país esgotado”. Sociedade derrotada, tempo morto. A história passou e nós ficamos. Sem direção, sem desenvolvimento ou subdesenvolvimento. Sem projeto de futuro, sem nada. Ou com tudo o que fomos capazes de construir.
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