Imagine o alcoólatra que, na estrada a caminho da clínica de reabilitação em que vai se internar, decide parar num bar e passar uma semana tomando os últimos porres. É sinal preocupante, ninguém duvida.
Acompanhando parte da cobertura desta assustadora transição de poder, pergunto se a imprensa política americana não é o dependente químico que parou no bar. Jornalistas experientes continuam a cobrir ou destacar na rede social qualquer mentira ou fantasia escatológica de Donald Trump.
E não importa se o entorno de lunáticos e sicofantas que reforçam os delírios de poder do presidente não vai convencer militares americanos a apoiar um golpe para anular o resultado da eleição. Ou se o vice Mike Pence não é suicida para tentar virar a mesa em 6 de janeiro, quando preside a sessão no Congresso para confirmar o resultado dos votos no Colégio Eleitoral, tornando oficial a eleição de Joe Biden.
Na tradição do jornalismo que quer se qualificar como objetivo, é dever da imprensa manter plantão permanente junto ao chefe do Executivo. Mesmo no imediatismo e na democratização trazidos pelas mídias digitais, toda informação publicada por jornalistas é resultado de deliberação e edição.
Neste final nefasto da pior Presidência da história moderna americana, é sinal preocupante notar como Trump foi e continua sendo tratado por parte da mídia como um presidente semelhante a seus antecessores, como se cada tuíte absurdo tivesse consequência histórica.
Ele fez da sabotagem da apuração eleitoral uma campanha de marketing para cimentar o que espera ser uma pós-Presidência sob holofotes permanentes.
Trump trouxe alta de audiência e novos assinantes para a imprensa americana, embriagada por sua onipresença, hipnotizada pela geração permanente de escândalos e violações de decoro no cargo.
Como resumiu cinicamente o ex-presidente da rede CBS, Les Moonves, antes da eleição de 2016, “Trump pode não ser bom para o país, mas ele é diabolicamente bom para a CBS”. Ou, como disparou a uma plateia de correspondentes políticos, em 2018, a comediante Michelle Woolf: “Vocês ajudaram a criar este monstro, agora lucram com ele”.
Nos últimos quatro anos, um número recorde de repórteres políticos assinou contrato com editoras de livros para revelar bastidores da era Trump. O exemplo mais infame é o de Bob Woodward, que gravou Trump admitindo a gravidade da pandemia no dia 7 de fevereiro e escondeu a informação que poderia salvar vidas até publicar seu best-seller "Raiva", em setembro.
Se todo jornalismo é um serviço público, a cobertura política é especialmente associada à proteção da democracia. É também uma área mais contaminada pela proteção de fontes anônimas. Até que ponto a oferta de proteção é legítima se há crimes ou uma aberrante ruptura institucional em curso e a fonte é também cúmplice?
Woodward protegeu os assessores que lhe sopraram anos de malfeitos na Casa Branca. Já seu colega de fama na cobertura do escândalo Watergate, Carl Bernstein, divulgou, em novembro, a lista de 21 senadores republicanos que continuaram apoiando Trump, mas, anonimamente, admitiram que sua reeleição seria um perigo para o país.
Se eles tivessem sido honestos com os eleitores, teriam aprovado o impeachment no dia 5 de fevereiro —e quantas das 340 mil mortes nos EUA durante a pandemia teriam sido evitadas? Já passou da hora de desmontar o circo em torno do poder moribundo e aderir a um programa de desintoxicação.
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