quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Passou da hora de a mídia desmontar o circo em torno de Trump e se desintoxicar, Lucia Guimarâes, FSP

 Imagine o alcoólatra que, na estrada a caminho da clínica de reabilitação em que vai se internar, decide parar num bar e passar uma semana tomando os últimos porres. É sinal preocupante, ninguém duvida.

Acompanhando parte da cobertura desta assustadora transição de poder, pergunto se a imprensa política americana não é o dependente químico que parou no bar. Jornalistas experientes continuam a cobrir ou destacar na rede social qualquer mentira ou fantasia escatológica de Donald Trump.

E não importa se o entorno de lunáticos e sicofantas que reforçam os delírios de poder do presidente não vai convencer militares americanos a apoiar um golpe para anular o resultado da eleição. Ou se o vice Mike Pence não é suicida para tentar virar a mesa em 6 de janeiro, quando preside a sessão no Congresso para confirmar o resultado dos votos no Colégio Eleitoral, tornando oficial a eleição de Joe Biden.

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante comício da campanha à reeleição em Swanton, no estado de Ohio
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante comício da campanha à reeleição em Swanton, no estado de Ohio - Mandel Ngan - 21.set.20/AFP

Na tradição do jornalismo que quer se qualificar como objetivo, é dever da imprensa manter plantão permanente junto ao chefe do Executivo. Mesmo no imediatismo e na democratização trazidos pelas mídias digitais, toda informação publicada por jornalistas é resultado de deliberação e edição.

Neste final nefasto da pior Presidência da história moderna americana, é sinal preocupante notar como Trump foi e continua sendo tratado por parte da mídia como um presidente semelhante a seus antecessores, como se cada tuíte absurdo tivesse consequência histórica.

Ele fez da sabotagem da apuração eleitoral uma campanha de marketing para cimentar o que espera ser uma pós-Presidência sob holofotes permanentes.

Trump trouxe alta de audiência e novos assinantes para a imprensa americana, embriagada por sua onipresença, hipnotizada pela geração permanente de escândalos e violações de decoro no cargo.

Como resumiu cinicamente o ex-presidente da rede CBS, Les Moonves, antes da eleição de 2016, “Trump pode não ser bom para o país, mas ele é diabolicamente bom para a CBS”. Ou, como disparou a uma plateia de correspondentes políticos, em 2018, a comediante Michelle Woolf: “Vocês ajudaram a criar este monstro, agora lucram com ele”.

Nos últimos quatro anos, um número recorde de repórteres políticos assinou contrato com editoras de livros para revelar bastidores da era Trump. O exemplo mais infame é o de Bob Woodward, que gravou Trump admitindo a gravidade da pandemia no dia 7 de fevereiro e escondeu a informação que poderia salvar vidas até publicar seu best-seller "Raiva", em setembro.

Se todo jornalismo é um serviço público, a cobertura política é especialmente associada à proteção da democracia. É também uma área mais contaminada pela proteção de fontes anônimas. Até que ponto a oferta de proteção é legítima se há crimes ou uma aberrante ruptura institucional em curso e a fonte é também cúmplice?

Woodward protegeu os assessores que lhe sopraram anos de malfeitos na Casa Branca. Já seu colega de fama na cobertura do escândalo Watergate, Carl Bernstein, divulgou, em novembro, a lista de 21 senadores republicanos que continuaram apoiando Trump, mas, anonimamente, admitiram que sua reeleição seria um perigo para o país.

Se eles tivessem sido honestos com os eleitores, teriam aprovado o impeachment no dia 5 de fevereiro —e quantas das 340 mil mortes nos EUA durante a pandemia teriam sido evitadas? Já passou da hora de desmontar o circo em torno do poder moribundo e aderir a um programa de desintoxicação.

Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.


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