Entre meus dez filmes de estimação, dois vieram de uma família: “A Malvada” (1950), direção, produção e roteiro de Joseph L. Mankiewicz, e “Cidadão Kane” (1941), direção de Orson Welles, produção de Orson Welles, estrelado por Orson Welles e roteiro de —que pena!— Orson Welles e... Herman J. Mankiewicz. Os Mankiewiczs eram irmãos e Herman, Mank para todo mundo, o mais velho. Já Orson, filho único, valia por uma família inteira. Esse foi o problema: ao importar Orson de Nova York para fazer um filme, Hollywood deu-lhe poderes nunca vistos. E ele não quis abrir mão de nem uma fração —imagine ter de dividir o crédito do roteiro de “Kane”. Daquele roteiro!
Perguntas: para que serve um roteiro, por mais completo, senão como base para o diretor? Ou como fica um diretor, por mais genial, sem o roteiro? No caso de “Kane”, a discussão é sobre se Welles filmou o roteiro tal como o recebeu de Mank, com todas aquelas inovações de câmera e cronologia, ou se foi Welles, sem Mank, que lhe deu o fabuloso formato final.
“Mank”, o filme de David Fincher em cartaz na Netflix, adere enfaticamente à primeira hipótese. Em várias passagens, ouve-se Gary Oldman, no papel do roteirista, defender a descontinuidade da história e ditar ângulos de câmera para a estenógrafa. Orson, reduzido a coadjuvante, é tratado ironicamente pelos demais como “o menino-prodígio”, “a 8ª maravilha” e até “o garoto com cara de cachorro”. É um delicioso acinte aos fãs do, para tantos de nós, maior cineasta do mundo.
Mesmo sem Mank, Orson teria feito um grande filme. Mas não aquele filme. Foi para Mank, não para Orson, que William Randolph Hearst, modelo do magnata Charles Foster Kane, e a atriz Marion Davis, amante dele, abriram sua intimidade. Mank os traiu, contando sua história.
E então Orson traiu Mank, roubando-lhe a história. Melhor para nós, que tivemos “Cidadão Kane”.
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