Da mesma forma que a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades no país, a recuperação da economia e a retomada das atividades também será desigual, principalmente por conta do que os economistas chamam de “efeito cicatriz” para alguns segmentos da população.
Segundo especialistas ouvidos pela Folha, as restrições impostas pela pandemia aceleraram uma transição em direção à economia digital, o que dificulta ainda mais a recolocação de pessoas com menor escolaridade e empresas com menos acesso à novas tecnologias.
Os dados mostram que pessoas com empregos formais sofreram menos que os informais e estão recuperando mais rapidamente seus postos de trabalho. A população mais jovem foi a que mais perdeu renda e horas de estudo. Famílias de regiões mais pobres que dependiam de idosos perderam sua principal fonte de renda.
“A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas”, afirma Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Segundo a instituição, o tempo de estudo dos brasileiros caiu de 4 horas por dia para 2 horas e 23 minutos. Essa queda foi maior entre os alunos de escolas públicas, entre os alunos mais pobres, mais jovens e periféricos.
Alunos de escola pública de 6 a 15 anos estudaram 2 horas e 18 minutos na pandemia, enquanto os de instituições privadas tiveram 3 horas e 6 minutos de aulas. Entre as pessoas que recebem Bolsa Família, foram 2 horas e 1 minuto.
No Pará, 42% dos estudantes do ensino médio não estudaram porque não receberam material. Em Santa Catarina, eram 2%.
Os mais jovens, muitos deles estudantes, também são os que mais perderam renda do trabalho na crise atual. Para pessoas de 15 a 19 anos, a queda desses rendimentos foi de 34%.Na faixa de 20 a 25 anos, a perda foi de 25,9%. De 25 a 29 anos, 22,7%. Em todos os casos, acima da perda média de 18,7%.
“Esses jovens, que você pode chamar de geração Covid, foram os que mais perderam renda no mercado de trabalho antes da pandemia e, durante ela, continuaram sendo o grupo que perdeu mais”, afirma Neri.
“Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente” Marcelo Neri, diretor da FGV Social
O diretor da FGV Social inclui também entre esses vulneráveis as famílias que dependiam de idosos que morreram em decorrência da Covid-19, principalmente no Nordeste e outras regiões mais pobres,
onde há o fenômeno das famílias estendidas, sustentadas boa parte por aposentados.
“Os idosos são o grupo que apresenta a maior taxa de letalidade, são as principais vítimas do ponto de vista sanitário. Em muitos casos eles eram arrimos de família. As pessoas que moravam com eles, esses órfãos da terceira idade, perdem uma fonte de renda além de perder o ente querido”, afirma Neri.
Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, também afirma que a crise deixará sequelas para um grupo de jovens e crianças que terá mais dificuldade em ter acesso a melhores empregos no futuro.
Ela questiona ainda o conceito de recuperação econômica quando se fala na expectativa de um crescimento maior da economia no próximo ano, pois, para muitas empresas e pessoas, não haverá recuperação.
“Fala-se da recuperação da economia, mas ela não é para todos. É para aqueles que têm mais condições. Para aqueles que podem ter perdido um pouco, mas já recuperaram o que perderam e vão ganhar ainda mais, mas não para a maioria da população brasileira”, afirma Maia.
“Há uma perda já cristalizada para todos esses jovens e crianças que não tiveram a oportunidade ou não tiveram o direito de estudar como aqueles que estão em situação econômica e social melhor.”
A Oxfam afirma que seria importante manter e criar novos programas de apoio a essa população, que poderiam ser financiados por meio da taxação de empresas e pessoas físicas que tiveram ganhos elevados neste ano.
“Por tudo o que a gente vê do governo atual e do Congresso, a prioridade não está sendo o enfrentamento das desigualdades no próximo ano. Vamos ter muitos desafios e não há indicação do que vai ser a priorização orçamentária para tratar desses temas”, afirma Maia.
O pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Marcos Hecksher afirma que pessoas que têm problemas de empregabilidade durante crises costumam ter mais dificuldade de reinserção também.
Em muitos casos, esse retorno tende a ser mais instável, com maior probabilidade de entradas e saídas mais frequentes, além de dificuldade de alcançar melhores posições.
O pesquisador lembra que, pela primeira vez na história recente, o país chegou a ficar com menos da metade da população em idade de trabalhar exercendo alguma atividade.
“Fica o que a literatura tem chamado de efeito cicatriz. Tem alguns efeitos que ficam para o longo prazo, nas pessoas e nas empresas também. Essa cicatriz vai ficar para muita gente que foi afetada neste ano”, afirma Hecksher.
Ele diz ainda que o Brasil enfrenta uma dificuldade adicional nessa recuperação por ter ficado entre os piores países em dois indicadores, o de mortes por habitante e de queda na população ocupada.
“A gente tem um duplo problema maior do que o resto do mundo, mais mortes por habitante e mais perda de emprego do que a maioria dos países. E nós já estávamos em um patamar ruim no ano passado, vindo de uma recuperação tênue da crise anterior”, afirma Hecksher.
“Vai precisar de muita política pública para ajudar a recuperar esse espaço e evitar um aumento da pobreza e da desigualdade", Marcos Hecksher, pesquisador do Ipea
O economista Ricardo Paes de Barros, professor do Insper e um dos formuladores do programa Bolsa Família, afirma que o Brasil terá o desafio de reinserir cerca de 25 milhões de pessoas no mercado de trabalho e que isso não poderá ser feito apenas por meio da geração de novos postos.
Segundo ele, é necessário pensar em programas com recursos públicos, que podem ser executados por meio de entidades do terceiro setor, por exemplo, para recolocação desses trabalhadores, além de um apoio adicional de suporte àqueles que não vão conseguir uma nova ocupação imediatamente.
“Não adianta só a economia brasileira se recuperar, precisamos de programas que vão ajudar e acelerar o processo desses trabalhadores voltarem a se inserir produtivamente na economia brasileira”, afirma Barros.
Ele também defende programas de apoio e assistência técnica a microempreendedores que terão de reerguer seus negócios afetados pela pandemia.
Para o economista, é necessário ainda reorganizar trabalhadores, de maneira a utilizar as capacidades que eles já possuem, mas em arranjos que sejam mais produtivos, como cooperativas certificadas por entidades públicas.
“Talvez mais importante do que dar uma nova formação para essas pessoas seja valorizar as competências que eles já têm.”
DESEMPREGADOS ANSEIAM POR VACINA PARA VOLTAR A TRABALHAR
Pessoas que ficaram sem ocupação durante a pandemia têm recorrido ao auxílio emergencial, que acaba neste mês, e à ajuda de entidades e governos que distribuem cestas básicas. Enquanto isso, esperam por uma normalização da economia que permita encontrar uma nova ocupação.
Moradora do Jardim Guarani, Joice Lopes, 33, comemora o primeiro dia de trabalho de seu marido como tapa-buraco da Prefeitura de São Paulo.
Já ela está desempregada há nove meses, quando foi dispensada do serviço de cuidadora de idosos. Um mês depois, descobriu que estava grávida da primeira filha, que vai nascer em janeiro. “A família queria deixar a senhora isolada e me mandou embora”, diz.
Dia 18, recebeu a última parcela do auxílio emergencial, e agora está atrás de outra fonte de renda para 2021. “Depois que a Naila nascer, espero voltar a trabalhar como atendente ou operadora de caixa.”
Ela está entre os 14 milhões de desempregados registrados pelas estatísticas do IBGE até novembro.
Outros 14 milhões não procuram trabalho e estão em desalento.
Maria Aparecida, 59, faz bicos de faxina, mas teve tendinite e não consegue trabalhar.
“Eu sou por conta, se eu não trabalho, não recebo”, diz, enquanto espera na fila para receber uma cesta básica na Brasilândia, zona norte de São Paulo. Ela vive com a filha, que trabalha em restaurante e ficou quatro meses parada durante a pandemia, recebendo apenas metade do salário. “É melhor do que nada. A cesta também ajuda, dá para mais de mês, mas depois a gente tem que se virar.”
Sheila Cavalcante, 39, se formou em pedagogia no final de 2019 e pretendia começar a atuar na área neste ano, mas a pandemia adiou os planos. Ela tem dois filhos pequenos e seu marido, que era registrado em uma marcenaria, foi mandado embora ainda em março, quando as medidas de isolamento começaram em São Paulo. Os dois se cadastraram para receber o auxílio emergencial, mas só ela recebeu o benefício.
“As escolas fecharam, não tem jeito. O auxílio ajudou, mas você deixa de pagar a internet para pagar a luz e água. A única esperança é sair essa vacina para voltar a trabalhar.”
Claudia Pereira, 37, trabalhava na faxina de uma ONG voltada para crianças que também fechou as portas. Desde então, sobrevive de bicos e correndo atrás de cestas. Também recebeu o auxílio emergencial do governo. “Vai tudo em comida, água e luz”.
Seu filho mais velho era motoboy em uma casa de churros, mas foi dispensado. “Um simples vírus acabou com tudo. Agradecemos a Deus pelo dia a dia, porque estamos com saúde, mas que ano que vem seja melhor, porque este foi perdido.”
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