Há poucas décadas, a única possibilidade de cuidado para alguém que sofresse de algum problema mental era ser compulsoriamente isolado e segregado da sociedade em um hospital psiquiátrico, onde o então paciente era submetido a tratamento no qual sua palavra e seu desejo eram desconsiderados.
A partir dos anos 1960 esse cenário foi se transformando. Muitos países optaram por reduzir de maneira drástica as internações em hospitais psiquiátricos, pois elas se revelaram pouco eficientes. Com a mudança de olhar passou-se a investir recursos em serviços comunitários de saúde mental mais próximos dos lugares onde os indivíduos habitam, onde a vida acontece e onde se dá o processo saúde-doença.
Além disso, ganhou destaque a percepção sobre a importância dos fatores sociais, econômicos e culturais que levam os sujeitos a apresentarem algum tipo de sofrimento psíquico e que devem ser levados em consideração ao se efetivar uma proposta de tratamento e uma política de saúde mental.
Nesse contexto, diversos movimentos de combate a estigmas e preconceitos começaram a ganhar expressão internacional. Dentre eles, o movimento dos pacientes psiquiátricos que denunciavam e ainda denunciam a violação de seus direitos e a violência dos tratamentos aos quais foram (e ainda são) submetidos.
No Brasil, desde a década de 1970, tais denúncias também vieram à tona, escancarando a ineficiência do modelo de atenção até então vigente e a necessidade de construção de um sistema de saúde (incluindo a saúde mental) ancorado na seguridade social, no acesso universal e no dever do Estado em provê-la e sustentá-la, como um direito do cidadão.
Assim, no lugar de uma oferta compulsória e exclusiva de internação, criou-se uma ampla, complexa e diversificada rede de serviços de saúde mental, como Centros de Atenção Psicossocial (Caps), residências terapêuticas, centros de convivência, Consultório na Rua e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs), dentre outros.
Nesse modelo, valoriza-se o cuidado em liberdade no lugar onde o indivíduo habita, apostando no aumento da potência da vida do sujeito na construção de formas de lidar com seu sofrimento.
Esse processo está ancorado no contexto das transformações que a sociedade brasileira passou nos últimos 30 anos, especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988 e da construção do SUS, que estabeleceram um novo pacto social civilizatório.
Mas o risco de retrocesso tem sido permanente diante das ameaças do atual governo federal de retomar estratégias retrógradas que caminham na contramão das melhores práticas internacionais e nacionais. Recentemente, assistimos à intenção de revogar portarias que sustentam o financiamento e o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). No contexto em que as atenções se voltam para a Covid-19 e o ano se aproxima do fim, aproveitam para continuar “passando a boiada”.
Desmontar a Raps irá fragilizar a promoção, a prevenção, o tratamento e a reabilitação em saúde mental. Alimentará o aumento da iniquidade e da desassistência, dos casos mais leves aos mais graves. Além disso, o modo como está sendo tramada essa revogação é uma clara tentativa de negação da participação social na implementação dos sistemas de proteção, cerne da reforma sanitária e da reforma psiquiátrica.
A quem interessa o desmonte sistemático da política de saúde mental? Aos grupos de poder econômico e político que, historicamente, foram os únicos beneficiados pela barbárie do antigo modelo.
Por outro lado, somos vários, milhares de trabalhadores, gestores, usuários e familiares que criamos ações e cuidados, com participação social, com critérios e evidências científicas.
Seguimos resistindo aos desmontes e construindo caminhos. Assim tem sido e assim faremos, enquanto necessário for. Entre a barbárie e a civilização, não há dúvidas sobre quem está a escolher um caminho ou o outro.
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