A situação é tanto uma grande desgraça nacional quanto uma imensa oportunidade de negócios. Em uma das economias emergentes mais populosas e ricas do planeta, quase metade da população está desprovida de serviços de esgoto básicos, e 35 milhões de pessoas sobrevivem sem água potável limpa em suas casas.
“Existem 100 milhões de pessoas no Brasil sem acesso a esgotos”, diz Gustavo Montezano, presidente do BNDES, o banco nacional de desenvolvimento. “Ao falar de desigualdade social, meio ambiente e saúde, é necessário falar sobre serviços de saneamento”.
As deficiências brasileiras em termos de água encanada e esgotos são consequência de décadas de negligência, e parte de uma falta mais ampla de investimento em infraestrutura que o governo conservador do presidente Jair Bolsonaro está agindo para corrigir.
Este ano, o Congresso aprovou um projeto de lei proposto pelo governo que abre o setor de saneamento ao investimento privado. Antes reservados quase exclusivamente a monopólios estatais, esses serviços agora estão sendo abertos a concorrência por empresas privadas, que podem apresentar propostas para operá-los por 30 anos e ampliar a cobertura.
“Hoje, de 6% a 7% do setor de saneamento está sob o controle de entidades privadas”, diz Cassio Gouveia, diretor executivo de investimento no Itaú BBA, um banco comercial e de investimento. “Antecipamos que essa porcentagem suba substancialmente depois da aprovação da nova lei”.
Especialistas setoriais estimam que até R$ 700 bilhões (US$ 130 bilhões) em contratos possam ser colocados em concorrência nos próximos anos. Grupos internacionais de infraestrutura como o Brookfield, do Canadá, e o fundo nacional de investimento GIC, de Cingapura, estão entre as empresas que vão apresentar lances por meio de suas unidades locais. Os dois já apresentaram lances vitoriosos em concorrências para a oferta desses serviços.
“É uma oportunidade dourada”, diz Luiz Alberto Andrés, economista chefe do programa de infraestrutura do Banco Mundial no Brasil. “A nova lei... tem a maioria dos elementos que vemos como necessários a uma virada de jogo no setor... o desafio hoje em dia é a implementação prática”.
Uma das principais incertezas é se o Congresso brasileiro insistirá em uma cláusula que inseriu no projeto durante o debate, que permitiria que os contratos de saneamento existentes sejam renovados por 30 anos sem concorrência. O presidente Bolsonaro vetou a cláusula, mas o Congresso ainda pode derrubar sua decisão.Outro ponto de interrogação se relaciona à regulamentação: a agência nacional de fiscalização, ANA, tem a missão de reformular a mixórdia de regulamentos locais em vigor a fim de assegurar igualdade de condições, mas o processo ainda está em curso.
De qualquer forma, Montezano está confiante em que governos municipais deficitários em todo o Brasil possam se sentir tentados pelos ágios que poderiam ser obtidos em alguns contratos caso abram concorrências para a operação de seus serviços de saneamento.
Em um leilão de contratos de saneamento realizado em setembro e envolvendo cerca de 1,5 milhão de consumidores no estado do Alagoas, na empobrecida região Nordeste do Brasil, a BRK Ambiental, controlada pela Brookfield, superou diversos concorrentes ao oferecer um ágio de R$ 2 bilhões (US$ 373 milhões), ele diz. A companhia acredita que assinará o contrato ainda este mês.
“Foi um indicador muito forte”, disse Montezano. “Essa agenda é financeiramente lucrativa, além de seu impacto social. Agora, estados e prefeitos nos procuram pedindo por projetos”.
Os estados do Acre e Amapá devem abrir concorrência para contratos de água e esgotos, em breve, seguidos pelo estado do Rio de Janeiro. Outros expressaram interesse. “Em nossa opinião, esse programa de saneamento pode ser a maior redução da desigualdade social na história do Brasil”, conclui Montezano.
Henrique Carsalade Martins, CEO da Brookfield no Brasil, compara a abertura nascente no setor brasileiro de saneamento às medidas adotadas um quarto de século atrás para liberalizar a geração de eletricidade.
“É o primeiro passo em uma longa estrada”, ele diz. A Brookfield tem ativos de US$ 26 bilhões sob administração no Brasil, e investe em uma carteira de infraestrutura que inclui rodovias, portos, ferrovias, geração de eletricidade, agrobusiness e imóveis.
Em alguns países latino-americanos, como o Chile, a oposição política à privatização de serviços públicos aumentou, recentemente, em meio a queixas dos consumidores sobre preços altos e má qualidade, mas Martins confia em que as reformas do saneamento brasileiro não serão revertidas.
“Os governos federal, estaduais e municipais não têm dinheiro para investir, e o investimento precisa ser muito grande”, ele diz. “A pandemia também deixou claro o quanto o saneamento básico e o acesso a agua tratada são importantes”.
As entidades estatais historicamente se provaram incapazes de prover investimento adequado nesses serviços, em parte por conta de prioridades políticas, diz Martins. “São projetos importantes mas que não geram votos”, ele diz. “Algumas pessoas chegam a dizer que, no Brasil, obras de saneamento funcionam diferentemente da construção de pontes [na política local], porque elas acontecem no subsolo, o trabalho não é visível acima da terra, de modo que as pessoas não o veem acontecer”.
O que ninguém duvida é a necessidade urgente de que a maior economia da América Latina resolva seu déficit de investimento.“O desenvolvimento de infraestrutura será essencial para a recuperação do Brasil e para impedir que milhões de brasileiros caiam à pobreza”, diz Andrés, do Banco Mundial. “Acesso a água e saneamento continua a ser uma prioridade de saúde pública, e a necessidade de expandir rapidamente o acesso a serviços básicos é crítica”.
Financial Times, tradução de Paulo Migliacci
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