24 de junho de 2020 | 13h50
Tem causado furor nas redes sociais a declaração da escritora e tradutora Lya Luft, que disse ter votado em Bolsonaro e estar agora arrependida.
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Não deveria causar surpresa aos seus leitores. Mulher culta, tradutora de autores clássicos e ela própria escritora, Luft expressava seu profundo conservadorismo nas colunas que escrevia na revista Veja.
Desse modo, no Brasil polarizado de 2018, seu voto seria mais do que previsível. E não seria do PT, mesmo que o candidato do partido, na ocasião, fosse um culto e afável professor universitário. Ou seja, alguém, supostamente, mais próximo do universo de Lya Luft do que seu concorrente fanfarrão e tosco, um ferrabrás das cavernas, violento e admirador de torturadores. No entanto, foi neste que Lya votou. Com um agravante: Bolsonaro jamais escondeu o que era.
Imagino que ela, como muita gente, fez isso mesmo, “por não aguentar mais o PT”, como disse.
Votou útil, portanto. Mas é “útil” o voto que se destina a alguém tão desqualificado e desequilibrado? Essa, a questão mais à tona. Quando dizemos “qualquer um menos esses que aí estão”, estaremos prontos a nos inclinar pelo pior malfeitor, contando que seja adversário do grupo que eu detesto?”. Bem, o resultado está aí e os fatos respondem por si mesmos. Quando votamos no pior, ele se instala, cresce e nos engolfa, pois passamos a fazer parte dele.
A questão de fundo, que muito me preocupa, é ainda outra. Com Lya Luft, e outros, aprendemos uma lição que já deveríamos saber há pelo menos 87 anos: contra a nossa intuição, verificamos que a cultura não impede que as pessoas instruídas cometam desatinos políticos. Foi assim em 1933, quando a Alemanha, um dos países mais cultos do seu tempo (talvez o mais culto), conduziu Hitler ao poder e o país à ruína.
Muita gente já tentou entender esse fenômeno e de vários ângulos, pelo ponto de vista da prática histórica (Robert Paxton) ou psicanalítica (Wilhelm Reich). Como povos educados são levados a idolatrar líderes que, forçosamente, os levarão ao abismo?
Mistério. Intuo, sem conseguir desenvolver muito bem, que, lá no fundo, na região indizível, atua silenciosamente a pulsão de morte (já repararam no fascínio fascista pela violência, pela morte e pelo sacrifício?). Parte da Itália quis morrer em 1922 com Mussolini; parte da Alemanha desejou a morte com Hitler em 1933. Parte do Brasil flertou com a morte em 2018.
Um pouco mais próximo da superfície estaria operando o ressentimento. No caso da Alemanha, bastante visível com a derrota na 1ª Guerra, as condições draconianas de reparação impostas pelo Tratado de Versalhes, a crise econômica, a hiperinflação.
Cito aqui Max Scheler, autor do clássico L’Homme du Ressentiment:
“O ressentimento é um auto-envenenamento psicológico de causas e efeitos bem determinados. É uma disposição psicológica, de certa permanência, que, pela repressão sistemática, libera determinadas emoções e sentimentos, em si normais e inerentes aos fundamentos da natureza humana, e tende a provocar uma deformação mais ou menos permanente do senso de valores, tanto quanto da capacidade de julgar. Tais emoções e sentimentos incluem acima de tudo: o rancor e o desejo de vingança, o ódio, a maldade, o ciúme, a inveja, a malícia”.
Razões para ressentimentos não faltavam no Brasil pós 2013, por razões sobejamente conhecidas. Tenho a impressão de que este estranho sentimento esteve presente em 2018 quando então o desejo de revanche pôde se materializar num voto catártico e vingativo, mesmo que a preço de levar o país e todos nós ao abismo.
O instinto de morte nos conduz aos tiranos. O ressentimento é mais forte que a cultura.
Com tudo isso, acho que devemos acolher os arrependidos e não repudiá-los. Devemos respeitar esse mea culpa porque nada é mais difícil para o ser humano que admitir um erro.
O sofrimento é também uma escola e possivelmente essas pessoas votarão melhor nas próximas eleições, caso estas existam.
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