Ao completar 70 anos, agência da ONU para refugiados nem deveria existir
Nesta segunda-feira (14), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) completa 70 anos de idade. Para uma organização que deveria deixar de existir três anos após ser criada, este é um aniversário desconfortável que não temos a intenção de celebrar.
Enquanto um mundo despedaçado se reconstruía após a 2ª Guerra Mundial, o Acnur deveria encontrar um novo lar para os refugiados da Europa. Naquele 14 de dezembro de 1950, seu mandato era limitado no tempo, geograficamente e explicitamente apolítico, como se sua existência lembrasse as misérias que deveriam ser varridas junto com escombros da guerra.
Mas mudanças na ordem mundial trouxeram novos conflitos e mais refugiados: desde húngaros escapando da revolta de 1956, esmagada por forças soviéticas, a argelinos deslocados pela guerra de independência do país em 1957 e os conflitos que acompanharam a era pós-colonial. Ano após ano, em todos os continentes, o Acnur foi chamado para ajudar um número crescente de pessoas forçadas a se deslocar.
O ano de 2019 marcou quatro décadas de deslocamentos vindos do Afeganistão. E 2021 será o 10º ano do conflito na Síria. E assim vamos: vários aniversários indesejados, novos conflitos emergindo ou se mantendo à tona, enquanto os impactos dos antigos ainda permanecem. Um mundo que prometeu embarcar em uma nova era de paz se mostrou muito bom em escolher brigas, mas pouco adepto a resolvê-las.
Colegas do Acnur do passado e do presente têm muito orgulho da diferença que fizeram na vida de quem protegeram e salvaram. E se orgulham de enfrentar novos desafios, como as mudanças climáticas e, mais recentemente, a pandemia do coronavírus —fatores que ampliam os já significativos problemas causados pelo deslocamento forçado.
Ao mesmo tempo, desejam não terem feito isso. Se partes conflitantes concordassem um cessar-fogo, se as pessoas deslocadas pudessem retornar para casa em segurança, se governos compartilhassem a responsabilidade pelo reassentamento, se os países mantivessem suas obrigações sob as leis internacionais de asilo e o princípio da não devolução (não mandar de volta quem fugiu de ameaças às suas vidas), então nós no Acnur teríamos muito menos com o que se preocupar.
Em 1994, fui parte da equipe de emergência do Acnur no então Zaire, agora República Democrática do Congo. Em quatro dias, 1 milhão de pessoas cruzaram a fronteira com Ruanda, apenas para cair em um surto de cólera que matou dezenas de milhares. Colegas comprometidos em proteger essas pessoas estavam, em vez disso, cavando sepulturas. Você pode pensar nas vidas que salvou, nos momentos em que o desespero de uma pessoa refugiada se torna esperança devido às suas conquistas. Mas você nunca deixa de pensar nas vidas que não conseguiu salvar.
Há quase um ano, o número de pessoas refugiadas, deslocados internos, solicitantes de asilo e apátridas atingiu 1% da população mundial. Imagino qual percentual poderíamos considerar inaceitável: 2%, 5% ou mais? Quantas pessoas precisam sofrer as perdas e indignidades do deslocamento forçado antes que líderes políticos trabalhem para solucionar as causas das fugas?
Então, no 70º aniversário do Acnur, lanço um desafio à comunidade internacional: tirem-me do emprego. Busquem construir um mundo sem a necessidade de uma agência da ONU para refugiados, no qual ninguém seja forçado a fugir. Não me entendam mal: se o problema permanece, nosso trabalho é crucial —o paradoxo é que nós não deveríamos existir. Se seguirmos contando muitos outros aniversários, a única conclusão será a de que a comunidade internacional falhou.
Mas, se os fatores que forçam deslocamentos massivos fossem resolvidos em apenas meia dúzia de países, milhões de pessoas refugiadas poderiam voltar para casa, assim como milhões de deslocados internos. Isso seria um bom começo —e algo a ser realmente celebrado.
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