domingo, 23 de agosto de 2020

Em histórias de santos medievais, Deus fazia aborto, Flash Back FSP

Fábio Marton

Há uma semana, dia 16 de agosto, um grupo de manifestantes religiosos tentou invadir um hospital para impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, interrompendo a gravidez fruto de repetido estupro por um tio. O caso gerou repulsa profunda entre quem não compartilha a visão dos manifestantes – que vem a ser a maioria dos brasileiros. E levou a uma declaração do presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira Azedo. Disse que o aborto legal foi um “crime hediondo”.

A Igreja defende que sua posição é consistente com leis imutáveis do próprio Deus. Mas ou as leis mudaram, ou foi Deus. Porque, no passado, católicos chegaram a acreditar que Deus em pessoa provocava abortos. E não de castigo, mas como uma dádiva, um milagre.

Está em biografias (hagiografias) de quatro santos, todos da Irlanda. São eles: Santa Brígida de Kildare (451-525), São Ciarán de Saighir (?-530), Santo Áed mac Bricc (?-589) e São Cainnech de Aghaboe (515-600). A cada um deles, foi atribuído um aborto milagroso, uma intervenção divina que acabou com uma gravidez indesejada.

Aéd visitou um convento e notou que a barriga de uma freira “crescia sem comida”. A freira confessou ter caído em tentação e “Santo Aéd abençoou seu útero e subitamente o infante no útero desapareceu como se não existisse”.

Cainnech ouviu a confissão de fornicação de uma freira, que pediu para abençoar seu útero. Ele assim o fez e “de uma vez o infante no útero sumiu sem qualquer traço”.

Santa Brígida é padroeira das parteiras, dos recém-nascidos e da própria Irlanda (com São Patrício e São Columba). A ela são atribuídos vários milagres relacionados à gravidez. E um aborto. Novamente, de uma freira que havia ficado grávida num momento de fraqueza. “Brígida, exercendo a maior força de sua inefável fé, a abençoou, causando o feto a desaparecer sem nascer, e sem dor”. A freira assim abençoada termina por agradecer a Deus.

O relato mais detalhado, antigo e explícito é o de São Ciarán, escrito no século 7. Aparece na coletânea Vitae Sanctorum Hiberniae (“Vida dos Santos da Hibérnia”, isto é, Irlanda). Uma princesa virgem chamada Bruinnech decide se tornar freira, sob a proteção do santo, em seu mosteiro. Um rei, Dímma, tomado por desejo pecaminoso, rapta e estupra a jovem. Segue o relato: “Ciáran, desprezando a enormidade de tamanho crime, e desejando aplicar uma cura, foi até a casa do sacrilégio para trazer a garota de lá. O homem de Deus retornou ao monastério com a garota e ela confessou que estava grávida. Então o homem de Deus, guiado pelo zelo da justiça, não querendo que a semente da serpente crescesse, apertou sobre seu útero com o símbolo da cruz e forçou seu útero a se esvaziar”.

MILAGRES ESQUECIDOS

Estamos falando de histórias realmente esquecidas pelo tempo. Com exceção desta última, a de Ciáran, todos os abortos milagrosos foram suprimidos de hagiografias posteriores dos santos. “Eu diria que essas são histórias católicas obscuras”, afirma a historiadora da religião Maeve Callan, da Simpson College (EUA), autora do artigo Of Vanishing Fetuses and Maidens Made-Again: Abortion, Restored Virginity, and Similar Scenarios in Medieval Irish Hagiography and Penitentials (“Sobre Fetos Desaparecidos e Donzelas Refeitas: Aborto, Virgindade Restaurada, e Cenários Similares na Hagiografia e Penitências Medievais Irlandesas”; as traduções acima derivam de suas versões em inglês para o latim original). “Tão obscuras que a maioria dos católicos – provavelmente quase todos – não conhece.”

Não é porque algo está numa hagiografia que aconteceu, é óbvio. Pouca gente acredita que São Jorge enfrentou um literal dragão. Mas isso torna essas histórias ainda mais importantes, na verdade. “Hagiografia, falando estritamente, não é história”, afirma Maeve. “Seu objetivo não é registrar uma biografia objetiva do santo, mas apresentá-lo numa forma idealizada, um ser humano tão transformado pela graça de Deus que ele ou ela pode atingir façanhas nunca vistas.”

O que os santos aborteiros da Irlanda demonstram, que não é regional nem limitado ao começo da Idade Média, é que a Igreja já acolheu um pensamento muito diferente a respeito do aborto. “Se procurarmos ver o que diz a tradição católica sobre este tema, também encontraremos muitas contradições”, afirma a assistente social e mestra e doutora em ciências da religião Regina S. Jurkewicz, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, em seu artigo A Defesa da Vida no Pensamento Católico. “Por exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274) admitia um desenvolvimento progressivo do embrião, através de etapas sucessivas. Para ele, a alma só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la, e o óvulo fertilizado ou o embrião não podem ter uma alma humana porque não estão prontos para isso.”

Aquino e outros pesos-pesados da Igreja como Santo Agostinho (354-340) consideravam o aborto um pecado muito sério, mas defendiam que o embrião só se tornava humano bem depois da concepção. Portanto, aborto nesse estágio não era equivalente a assassinato. Aquino datava o momento em que isso mudava de figura, a hora da entrada da alma, ou “hominização”, em 40 dias para meninos, 90 para meninas.

Isso não era um consenso universal: outros teólogos, como João Crisótomo (347-407), não faziam distinção de tempo. A discussão se estendeu pelos séculos, mas o lado de Aquino predominou. A outra ala venceu em 1588, quando o papa Sisto 5emitiu uma bula excomungando todos os que se envolveram em aborto, independente do tempo de gravidez. Mas a ordem seria revertida três anos depois, por Gregório 14, que determinou que a hominização acontecia na 16a semana desde a concepção, período em que a maioria das grávidas percebe o feto se movendo, “chutando”. Isso restabeleceu a distinção entre dois tipos de aborto, que duraria até 1869.

A Igreja sempre condenou o aborto, não há dúvida. Mas de duas formas diferentes. Uma é a de um pecado de fornicação: um ato sexual que, prega o catolicismo, só devia acontecer por razões reprodutivas. O pecado aqui é tentar se escapar das consequências naturais – um “ato contra a natureza”, como sexo oral, com camisinha, pílula etc. Algo muito diferente é um pecado de homicídio. Para esse crime, é preciso acreditar que um óvulo fecundado é equivalente a uma pessoa adulta, como a Igreja defende hoje.

Essa distinção perdida ajuda a entender os milagres de aborto medievais. Nessas histórias, Deus não estava matando inocentes, mas livrando das consequências do pecado, num gesto de misericórdia que restaurava a honra das freiras. “Acredito que há uma forte conexão com essa distinção”, afirma Maeve. “Algumas penitências medievais indicam uma consciência similar de graus de severidade – no começo da gravidez sendo mais permissível, exigindo menos penitência.”

E relato de São Ciáran é particularmente significativo. “O estupro que causou a gravidez foi reconhecido como violência, mas o aborto foi mais como fazer sumir com o feto e os efeitos da gravidez, e restaurar o corpo a seu estado pré-gravidez – desfazer uma violência no lugar de perpetrá-la”, afirma a historiadora.

Por que essa postura mudou? Não sem alguma ironia ao olhar contemporâneo, pela ciência. Com a compreensão da fecundação humana e o desenvolvimento embriônico, a partir da década de 1830, foi posta em dúvida a ideia de que a alma entrava apenas quando o feto começa a chutar. Em 1869, o papa Pio 9o excomungou novamente todos os envolvidos em aborto, mudando o entendimento para o atual, de que todo aborto é o assassinato de um inocente. Está no cânon 1.398, no Código de Direito Canônico, que afirma:

Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae [i.e., automática].

Seguindo essa regra, em 2009, num caso semelhante ao atual, envolvendo uma menina de 9 anos grávida de gêmeos, levou o então arcebispo (hoje emérito) de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, a declarar que a mãe e os médicos estavam automaticamente excomungados, gerando um escândalo que mobilizou até o então presidente Lula. Diante da reação negativa, a CNBB se moveu para afirmar que a mãe, por ter atendido à pressão e ao medo de perder a própria filha, não estaria excomungada, baseando-se em outra lei, o cânon 1.324, que prevê exceções para a excomunhão.

Nessa explicação, porém, não entrava nem o fato de ser estupro nem de ser contra criança. Não existe essa exceção. Aborto, para a Igreja Católica, não pode ser feito nem para salvar a mãe. A única possibilidade em que é permitido é se o bebê ser perdido faz parte de outro procedimento, como a remoção de um câncer, no qual a intenção não é tirar o feto. A absolvição que o papa Francisco deu, em 2015, para todas as pessoas envolvidas em aborto, foi o indulto por um crime. Que, para a Igreja, continua a ser crime.

OS DISSIDENTES

Mas o que pensam os católicos contemporâneos que discordam? Conversei com a teóloga Isabel Aparecida Felix, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e doutora em ciências da religião. “Para nós, mais do que olhar para essa questão do aborto como uma questão religiosa, é olhar como uma questão de saúde pública, que a igreja não olha, como uma questão da dignidade das mulheres, e como uma questão do direito da autonomia, a autodeterminação das mulheres”, afirma.

As Católicas Pelo Direito de Decidir defendem que a mesma ciência usada pela hierarquia católica para justificar sua postura inflexível na verdade está de seu lado, com estava do lado dos teólogos medievais e dos hagiógrafos irlandeses. “Não há possibilidade de consciência sem vida cerebral”, afirma Dra. Regina Jurkewicz. “A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. O córtex cerebral é uma condição indispensável para que haja consciência humana, portanto para que haja uma pessoa.”

Segundo Isabel Felix, há uma falta de foco em outra parte da teologia católica. Ela cita a própria Declaração Sobre o Aborto Provocado, da Congregação Pela Doutrina da Fé (a versão atual da Inquisição). No artigo 9, afirma-se:

“Nunca se pode tratar um homem como simples meio de que porventura se dispusesse para alcançar um fim mais elevado”.

“O código é bem machista e patriarcal, e fala do ‘homem’, mas a gente interpreta como o direito à autonomia do ser humano”, comenta. “Ao mesmo tempo em que a igreja diz não olhar para as pessoas como objeto, mas como sujeitos de decisão, há uma incoerência: a questão das autonomia das mulheres para com o próprio corpo, com a sexualidade, não conta para a Igreja.” A teóloga diz que, ainda que haja uma vasta teologia feminista, que favorece essa autonomia, ela não tem penetração numa Igreja exclusivamente masculina em suas estruturas de decisão.

Se alguém discorda frontalmente dessa organização impenetrável, por que continuar a ser católico? Perguntei isso a Isabel, que respondeu: “Dentro da tradição católica, existem valores que nós acreditamos, da justiça da compaixão da dignidade. Por que continuamos? Por que não permitimos que eles, que a Igreja como instituição, defina o que é catolicismo para nós. Para eles, a igreja é a hierarquia. Para nós, é a comunidade.”

Tentei falar com a hierarquia, aliás. Levei a questão das mudanças no pensamento católico e a história dos santos irlandeses à CNBB. A assessoria de imprensa recebeu minhas perguntas e afirmou tê-las encaminhado a um bispo especialista em bioética. A reposta, infelizmente, não chegou no prazo combinado, a tempo da publicação. 

Ficamos, assim, com as palavras de seu presidente. Estupro de criança e interrupção legal da gravidez, numa menina estuprada de 10 anos: “Dois crimes hediondos”.

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