domingo, 23 de agosto de 2020

Dois minutos de ódio, Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo


23 de agosto de 2020 | 03h00

Um jovem negro é assassinado no Rio de Janeiro. Começa um jogo de empurra-empurra. A novela é tradicional. Ecoam gritos e dedos em riste: “Bala perdida”; “reação à violência do tráfico”, “despreparo da polícia”; “genocídios de negros”; “o problema é o consumidor da zona sul”; “a culpa é do PT”; “a culpa é do Bolsonaro”; “a culpa é do governador Witzel”; “começou com o Brizola”; “foi a Globo”; “a culpa é do Cabral”... Por alguns dias as redes sociais registram os argumentos de sempre.

Muita gente posta sua indignação em textos comoventes ou imagens arrasadoras. Incluo-me no processo. Estampamos nossa dor nas redes. “Até quando?”, perguntamos. Como nossas páginas têm relativa homogeneidade ideológica, o grosso das pessoas presentes acompanha o “voto do relator”. Cria-se um efeito eco retumbante e temos o reforço da sensação de que falamos pela maioria. Sim, sempre falamos em nome da maioria dos que concordam conosco. Nossa dor é genuína. A indignação vira luto digital. E...

A partir das reticências anteriores, começa minha dúvida. Teria valor o luto/protesto digital? Por um lado, vivemos o mundo onde a opinião expressa nos tópicos direciona ações. Aliás, as pessoas são cobradas por uma expressão clara em suas redes. Existe pressão para isso. Se existem escritórios e gabinetes especializados na tentativa do controle digital das opiniões, significa, claro, que a média dos “trend topics” direciona o mundo do poder. Assim, o “luto digital” teria efeito. Um governador, hipoteticamente, poderia suspender uma operação policial duvidosa menos pelos riscos humanos envolvidos que pela reação negativa nas redes que arranharia sua imagem e seu projeto. Assim, de fato, o virtual é real e forte e o luto pode ser uma maneira eficaz de demonstrar uma reação política mais imediata do que o simples voto a cada quatro anos. As redes sociais teriam assumido o papel de plebiscitos permanentes, “reconsultas” diárias ao eleitorado e anunciariam, de alguma forma, um novo modelo de política.

Por outro lado, é possível supor o contrário. O volume alto de sofrimento em posts, mensagens e fotos teria o papel de um ópio sistêmico. Deixo de organizar um partido ou sindicato real, evito a greve ou a passeata e substituo toda a dor de enfrentar as vicissitudes mundanas a partir do meu sofá, com o celular na mão, cobrindo minha imagem com a palavra luto. Talvez seja a função que Orwell descreveu no livro 1984: os “dois minutos de ódio”. O público da distopia era reunido e, quando surgia a imagem do traidor, explodiam em raiva que, fora dali, inexistia: “A programação de Dois Minutos de Ódio variava todos os dias, mas o principal personagem era sempre Goldstein. Ele era o traidor original, o primeiro conspurcador da pureza do Partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido, todas as perfídias, sabotagens, heresias, todos os desvios eram resultado direto de sua pregação”. 

Acordo. Vejo algo que me irrita ou move minhas fibras morais mais fundas. Tenho raiva. Encontro um culpado. Vejo que mais gente compartilha do meu sentimento. Pego uma foto, crio uma frase, redireciono um post, recebo curtidas, mais indignação. Leio, satisfeito que, enfim, o mundo não está perdido. Ainda existem pessoas de bem com poder de rebeldia... como eu. Termino meu café e sigo para o trabalho. Por enquanto, Goldstein foi vencido. Nada mais no meu dia dialoga com o ato matinal de odiar. Temos capacidade de extravasar. Mais raramente, conseguimos uma indignação que saia da sala de estar.

Descrevi duas possibilidades sobre a eficácia do luto/protesto digital. Primeira: seria um mecanismo eficaz de pressão política, já que os governantes funcionam, hoje, mais pelo ibope do que por programas de estadistas. São apresentadores de shows de calouros de olho na audiência que mudam de rota de acordo com alguma claque orquestrada ou espontânea. Segunda hipótese: o ativismo digital serve para atenuar o ativismo prático, substituí-lo até. Insípida, inodora, incolor e criativa, a rede social é o novo anteparo oficial entre mim e o real, entre mim e a transformação do mundo. Satisfaz minha necessidade de participação, cria a ilusão de consciência e de protagonismo e... nada mais. Na primeira consideração, teríamos uma espécie de nova democracia direta participativa, ao velho estilo da pólis grega. Na segunda hipótese, teríamos realizado o mais sutil dos pesadelos críticos de Tocqueville: a democracia oprimindo a minoria a partir de um mecanismo acessível à maioria. A ditadura perfeita seria uma democracia digital? Posso postar o que eu quiser e manifestar toda minha indignação porque, no fundo, isso não altera nada do real. O aparente mundo bipolar, cáustico e maniqueísta das redes é, no fundo, um mundo plano no qual dois grupos se debatem em torno do vazio? A torcida presente ao Coliseu pode pedir o sangue dos gladiadores, torcer pelas feras, chorar pelos cristãos ou até participar da decisão de matar ou salvar o lutador porque, fora daquele espaço, a plebe é irrelevante? Após séculos de aperfeiçoamento da ideia democrática, teríamos conseguido um mecanismo tão sofisticado que a liberdade de expressão seria uma maneira perfeita de evitar o povo para sempre nas tramas do poder? Teoria conspiratória excessiva? Boa semana de postagens indignadas! 

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