sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Crianças se 'adultizaram' e adultos se infantilizaram, disse Otavio Frias Filho em entrevista inédita, FSP


SÃO PAULO

“Otavio poderia recebê-lo no dia 20 de outubro, terça-feira, às 17h. Você confirma?”.

Era outubro de 2015, e essa resposta chegou por email com uma rapidez inesperada pelo contexto. O noticiário fervia àquela altura, o jornal olhava com lupa os casos de corrupção na Petrobras, a Câmara estava prestes a acatar o pedido de impeachment contra Dilma Rousseff e já era possível sentir o caldo político que desembocaria no afastamento definitivo da presidente meses depois.

Foi no meio disso que Otavio Frias Filho me recebeu para falar sobre crianças e jornalismo infantil. Eu trabalhava no jornal havia cinco anos e, na época, desenvolvia pesquisa na USP sobre a Folhinha, suplemento infantil da Folha, para a qual pedi uma entrevista com o diretor de Redação.

Durante uma hora, Otavio respondeu a perguntas sobre o caderno, as mudanças na infância e o futuro do jornalismo. A entrevista estava inédita. Otavio morreu em 21 de agosto de 2018, aos 61 anos. Agora, quando completam-se cinco anos daquele encontro e dois anos de sua morte, essa conversa pode ser lida a seguir.

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A Folhinha foi criada quando você tinha seis anos de idade e seu irmão era mais novo. Existe alguma causalidade entre seu pai, Octavio Frias de Oliveira, ter filhos pequenos e o surgimento do caderno?

Eu não saberia dizer, sinceramente. Quando conversei com meu pai sobre a origem da Folhinha, ele nunca mencionou explicitamente o fato de que tinha filhos pequenos. Imagino que tenha sido um estímulo, mas nunca mencionou como causa específica.

O que, sim, mencionava é que tinha sido uma de suas primeiras providências, pelo menos na alçada editorial. Ele estava muito voltado para os problemas financeiros da empresa, que tinha uma situação problemática.

Nas vezes em que conversamos sobre a Folhinha, dizia que tinha sido uma proposta da Lenita [Miranda de Figueiredo, primeira editora do suplemento, criado em 1963]. Foi quem sugeriu e concebeu o caderno, com um apoio bastante decidido dele.

Seu contato diário e profissional com a Folhinha ocorreu em 1984, quando assumiu o cargo de diretor de Redação. Foi uma época em que houve uma das maiores mudanças no suplemento infantil, pelo menos do ponto de vista da pauta.

Também acho.

Foi um caderno inovador.

A Bell Kranz [editora da Folhinha entre 1984 e 1987], ao meu ver, foi quem introduziu uma alteração que talvez tenha sido pioneira em termos de jornalismo para crianças, pelo menos no Brasil. Em parte atribuo à Bell, em parte ao chamado Projeto Folha.

Ela começou a introduzir uma temática, entre aspas, adulta em um caderno infantil. Até então, só entravam na Folhinha temas que tivessem uma interface evidente com a criança. Com a Bell, começaram a aparecer assuntos como guerras. Ela, de alguma maneira, fazia aparecer todo o noticiário para adultos, mas de uma forma mais cuidadosa, explicativa, “didatizante”, claro. Não sei se chegou a fazer uma reportagem sobre Aids, mas era quase assim.

Essa capa foi feita, mas anos depois, pela Mônica Rodrigues da Costa. Talvez seja herança da maneira como a Bell começou a fazer jornalismo na Folhinha.

Isso foi incorporado ao patrimônio do jornalismo para crianças no Brasil. Hoje em dia, ninguém mais se surpreende se você fizer uma capa sobre o Petrolão para crianças, explicando os casos de corrupção. Esse tipo de temática adulta, vertida em linguagem infantil, começou com a Bell Kranz, a meu ver.

Otavio Frias Filho conta histórias para as crianças durante férias na praia de Carneiros, em Pernambuco, em janeiro de 2016
Otavio Frias Filho conta histórias para as crianças durante férias na praia de Carneiros, em Pernambuco, em janeiro de 2016 - Fernanda Diamant/Arquivo Pessoal

Pode ser também um reflexo da época? Porque me parece que, quando a Folhinha foi lançada, ela tinha um papel educativo mais forte pois poucos livros eram lançados para esse público.

Talvez. O que sempre foi muito forte na Folhinha, e acho que é uma verdade para a maioria, se não para todos os cadernos de jornalismo para crianças, é história em quadrinho.

Isso sempre foi uma tradição, e a Folhinha teve a sorte de o Walt Disney brasileiro ser um repórter policial da Folha da Manhã [risos], que gostava de desenhar e que logo emplacou o Horácio na Folhinha
[o cartunista Mauricio de Sousa, ao lado de Lenita Miranda de Figueiredo, foi um dos criadores do suplemento].

Aí eu me lembro muito bem, quando tinha seis ou sete anos, de todo domingo correr para ler o Horácio, que era a contracapa da Folhinha.

Sabe que isso vai na contramão de outras crianças? Segundo o Mauricio de Sousa, os leitores da Folhinha não liam os quadrinhos do Horácio por acharem que eles eram muito filosóficos e reflexivos.

Curioso. O Horácio era o meu personagem preferido. Ele tinha, de fato, um lado lírico, quase filosófico, que me agradava muito..

E como será a Folhinha de amanhã? Hoje há uma certa superexposição de informações, e o caderno já não é mais o produto que leva informação para a criança, que é bombardeada de notícias por todos os lados, pelas redes sociais...

Você não tem filho, né?

Não, não tenho.

Eu tenho uma filha, única, até agora pelo menos, de cinco anos. Fui um pai bem tardio, então entendo um pouco disso que você está falando [Otavio teve mais uma filha depois].

Qual é o papel do jornal para a criança hoje? Qual é a relação de sua filha, por exemplo, com a notícia?

O que eu diria seriam duas coisas. Primeiro, tenho a impressão de que é difícil contestar a noção de que as crianças se tornaram menos ingênuas ou que elas se “adultizam” mais cedo, em todos os sentidos.

Acho que essa é uma tendência universal que vem, até onde posso ver, dos anos 1960, se é que não de antes, e que vem continuando década após década. As crianças fazem tudo mais cedo. Esse é um elemento importante, é uma tendência histórica com certa profundidade, porque não é algo que está acontecendo circunstancialmente aqui e ali —até diria que é uma tendência da humanidade.

Na nossa espécie, a partir de 40 a 50 anos para cá, as crianças começaram a ter, digamos, um tipo de conhecimento e de assimilação do mundo adulto muito maior e muito mais precoce do que ocorria em gerações anteriores. Os motivos seriam uma discussão sociológica, mas acho que é difícil negar que isso esteja ocorrendo há algumas décadas.

A segunda coisa é que tenho impressão de que, também como outras formas de jornalismo, talvez o jornalismo para crianças deva transitar cada vez mais para uma posição de curadoria dessa massa gigantesca de informações.

Você tem toda a razão quando diz que um dos aspectos mais fascinantes em termos do tesouro que a internet representa para a humanidade é a facilidade de acesso a uma quantidade literalmente incomensurável de informações de todo o tipo. É um lugar comum ficar repetindo isso, mas é verdade.

É também verdade, me parece, que essa informação é muito caótica e está disponível sem nenhum tipo de critério. Então tenho impressão de que o jornalismo terá cada vez mais um papel de curadoria, de selecionar, de indicar, de recomendar, de filtrar, de processar essa massa imensa. Isso também é verdade, em certa medida, para o jornalismo para crianças.

Como esses dois aspectos que eu acabei de tentar resumir se consubstanciarão em jornalismo prático, eu não saberia dizer. Acho que caberá às gerações futuras, à sua geração, dizer como vai ser isso.

A gente vive um processo de crise no modelo de negócio do jornalismo, em que você tem um jornal cada vez mais enxuto, talvez até caminhando para uma “descadernização”. Como conciliar isso com um caderno infantil?

Acho que é uma mudança que ainda está em curso e, exatamente por isso, é difícil visualizar aonde ela vai nos levar. Você levanta perguntas que fazem parte do questionamento diário de qualquer Redação. Ninguém tem uma resposta acabada, está todo mundo fazendo ensaios, tentativas e erros.

De fato, acho que é uma crise no modelo de negócio, como você define bem, e não acho, no entanto, que o jornalismo vá desaparecer —o jornalismo tal como nós o concebemos. Não estou falando do “infotainment”, o jornalismo que é meio jornalismo meio entretenimento. Não estou falando dessas novas formas de jornalismo comunitário, jornalismo blogueiro.

Acho que essas modalidades são bem-vindas, embora eu tenha em relação ao jornalismo alternativo uma atitude parecida com aquela que tenho em relação à medicina alternativa. Em alguns casos pode ser útil, mas na maior parte das vezes não resolve nenhum problema de verdade.

Continuo acreditando que qualquer atividade profissional ou profissionalmente exercida é, em si, superior a qualquer atividade exercida de uma forma amadorística. Isso vale para a medicina e para o jornalismo. Então, continuo confiando no jornalismo tal como o concebemos, ou seja, um grupo de pessoas relativamente numeroso, treinado para apurar informações, redigi-las, transmiti-las, editá-las etc.

Continuo acreditando que a melhor maneira de fazer jornalismo é o jornalismo profissional, organizado em moldes empresariais, o que não quer dizer que eu não veja, como acabo de dizer, legitimidade nas outras formas. Acho que todas contribuem para a biodiversidade do jornalismo e até para a biodiversidade mental da sociedade.

Agora, não acho que o jornalismo desaparecerá porque acredito que ele responde a demandas que não estão desaparecendo, mas, na verdade, estão até aumentando.

As classes médias são cada vez mais numerosas nos países. É um fenômeno que não ocorre só no Brasil, mas tem escala mundial. Caminhamos provavelmente para ter daqui a 50 anos quase uma universalização de padrões de classe média na espécie humana.

Então não me parece que diminuirão as demandas por um jornalismo qualificado, que procura ter compromissos com relação à exatidão, à verificabilidade, que busca tratar de temas que são de interesse coletivo, de interesse social, da coletividade. As pessoas precisam desse tipo de jornalismo para exercer melhor sua cidadania política, econômica, cultural.

Agora, de fato, não está claro qual modelo de negócio vai atender a essa demanda.

Até porque essas crianças e jovens de classe média não parecem muito dispostos a pagar por essas demandas jornalísticas. Eles cresceram em uma cultura em que tudo é de graça ou, pelo menos, em que existe uma pretensa percepção de que tudo é de graça.

Isso você coloca bem, uma pretensa percepção de que tudo é de graça porque, ao meu ver, o próprio conceito de gratuito é uma falsidade. Nada é gratuito, alguém sempre está pagando —geralmente, sua excelência o público, porque não é o empresário quem vai pagar, não é o governo.

Essa conta vai sendo empurrada. No fundo, o povo está pagando. Às vezes, as pessoas pedem a internet livre e gratuita. É bonito como slogan. Mas, quando você começa a pensar, percebe que na sociedade nada é gratuito, sempre alguém está pagando alguma coisa. Pegar uma maçã em uma árvore custa trabalho.

E o jornalismo qualificado é um trabalho caro, oneroso em termos de dinheiro e também de tempo, principalmente se você cobre uma gama extensa de assuntos —de astronomia, como faz o Salvador
Nogueira
, ao humor, com o Gregorio Duvivier.

O público estará disposto a pagar por isso? Não sei. Quero crer que sim porque, para usar uma frase do Xico Sá, que é uma piada que resume o que acabei de dizer, “jornalista é que nem barata, não vai desaparecer nunca”. É piada, mas tem algum fundamento se você trocar “jornalista” por “jornalismo”. O processo também não vai desaparecer porque as demandas que ele procura responder não estão diminuindo. Pelo contrário, estão se encorpando.

O jornalismo infantil também não morrerá?

Quero crer que não seja um “wishful thinking” dizer que não porque, de novo, as crianças estão cada vez menos ingênuas. Aliás é um processo curioso porque não sou o primeiro a constatar, existem até livros falando sobre isso. As crianças se “adultizaram”, enquanto os adultos se infantilizaram. Isso vem ocorrendo há algumas décadas.

A adolescência nunca durou tanto.

Exato. Acho que esse processo começou nos anos 1960, com o poder jovem. Jovens têm uma legitimidade, uma autoridade que nunca na história humana tinham tido —embora eu ache que, ironicamente, o futuro é dos velhos porque cada vez mais uma parcela crescente da humanidade será composta de pessoas idosas, enquanto uma parcela decrescente será composta por jovens. Os jovens serão minoria logo mais. Apesar de tudo o que estou dizendo, não acho que seja um contrassenso ou um paradoxo dizer que o futuro está na velhice.

Mas fecho essa brincadeira só para dizer que está havendo uma dissolução das fronteiras que antes eram tão nítidas. Até os anos 1950, uma coisa era a criança, outra era o adulto. A criança precisava se preparar para a vida, o adulto precisava viver a vida. A criança não deveria, como se dizia antigamente, ser vista ou ser ouvida. Isso mudou, claro. A criança começou a viver sua vida de pleno direito, como qualquer adulto. Deixou de ser uma preparação para ser a vida em si.

Mas, retomando, as crianças estão menos ingênuas, sabem mais coisas, estão mais precoces, sensualizam-se com idade muito precoce. Nada disso me leva a crer que o jornalismo para crianças vá definhar.

Mas não sei que tipo de jornalismo ele será. Talvez algo na linha de curadoria dessa massa de informações. O tipo de pesquisa que um Google faz é muito precária ainda. A chance de você sair decepcionado ou irritado com o resultado é grande porque a quantidade de tralha que surge é imensa. É uma pesquisa um pouco burra.

Talvez esse caminho da curadoria seja uma alternativa, mas é mais fácil dizer do que fazer. Veremos.

Otavio Frias Filho em foto de 2015
Otavio Frias Filho em fotografia de 2015 - Lenise Pinheiro/Folhapress

Otavio Frias Filho (1957-2018)

Formado em direito, com estudo de pós-graduação em ciências sociais, Otavio Frias Filho começou a atuar na Folha em 1975 e foi diretor de Redação do jornal de 1984 até sua morte, em 21 de agosto de 2018. Escreveu, entre outros livros, “De Ponta-Cabeça”, “Queda Livre”, “Seleção Natural”, “Cinco Peças e uma Farsa” e o infantil “Livro da 1ª

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