Os robôs e a automação, as ondas de recessão e a perda de direitos trabalhistas: durante a última década, quando eventos políticos e socioeconômicos e as possíveis ameaças da inteligência artificial surgiram como as maiores fontes de incerteza sobre o futuro do trabalho, não imaginávamos que um minúsculo organismo, bem mais rudimentar, estava à espreita. Eis, então, 2020: às transformações tecnológicas e sociais que já há algum tempo assombravam o mercado, somaram-se os impactos de uma crise planetária provocada pelo novo coronavírus. E os mais afetados, em qualquer um desses casos, são os jovens — aqueles que estão entrando, ou ainda não entraram, na vida profissional.
Mais de um em cada seis jovens do mundo perdeu o emprego por causa da pandemia
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que mais de um em cada seis jovens do mundo perdeu o emprego por causa da pandemia e que esse período, no qual também ficou mais difícil estudar, deixará sequelas permanentes nessa parcela da população. Não que antes da covid-19 tudo fosse fácil: em 2019, a taxa de desemprego juvenil batia mais de 13%, maior que a de qualquer outro grupo. No Brasil, a juventude é a grande impactada pela falta de trabalho desde a crise fiscal de 2014, atingindo uma cifra de 36,1% de desocupação no primeiro trimestre de 2020, de acordo com o IBGE — número que pode saltar para 40% nos próximos meses.
Não bastasse a conjuntura externa desanimadora, as ambições pessoais das novas gerações parecem desprepará-las ainda mais para o amanhã, segundo o relatório Dream Jobs, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em janeiro. Com dados de 41 países, inclusive do Brasil, a pesquisa observou que a maioria dos adolescentes de hoje aspira a apenas dez profissões, “todas dos séculos 19 e 20”, muitas com risco de automação e sem potencial de desenvolvimento no século 21.
Ocupações tradicionais, como engenheiro, médico, advogado e professor, estão entre as mais desejadas. Ao mesmo tempo, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) prevê que 65% das crianças de hoje terão empregos que ainda não existem. Todos esses dados apontam para um cenário bastante imprevisível em relação ao futuro do trabalho para os mais jovens. Afinal, o que eles esperam da vida profissional e o que espera por eles no mercado?
65% das crianças de hoje terão empregos que ainda não existem
Os anseios da juventude
O paradoxo entre o relatório da OCDE e as previsões da Cepal revela a falta de referências mais amplas e a dificuldade em lidar com mudanças cada vez mais velozes, diz Cezar Almeida, diretor de inovação da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH). “É um exercício difícil para qualquer pessoa compreender que a realidade em que ela vive vai se desintegrar e uma nova vai surgir. Os jovens estão olhando para os parâmetros que já estão aí, no mercado de trabalho atual”, afirma em conversa com a Gama.
Essa ambição por carreiras tradicionais e supostamente estáveis, aliás, parece contradizer tendências de comportamento comumente relacionadas aos millennials e à geração Z, segundo as quais condições melhores de trabalho, um ambiente mais saudável e a possibilidade de moldar o emprego de acordo com as próprias necessidades seriam mais importantes que cargos e salários. No Brasil, por exemplo, o movimento é outro — por aqui, a maioria da juventude dá mais valor à propriedade e aos bens de consumo duráveis, o que pressupõe uma boa renda e estabilidade.
O contexto de subdesenvolvimento, altas taxas de desemprego e desigualdade do país podem explicar essa atitude. “É claro que essas demandas das novas gerações se manifestam quando os jovens têm chances razoáveis de encontrar bons empregos; quando as condições econômicas são difíceis e os empregos recompensadores são escassos, não é surpreendente que as preferências se concentrem mais na estabilidade e na perspectiva de carreira”, diz a Gama Stefano Scarpetta, chefe da área de emprego, trabalho e assuntos sociais da OCDE.
O relatório da organização confirma que as perspectivas de carreira dos adolescentes, consideradas irreais e pouco conectadas às hipóteses sobre o futuro do trabalho, são “distorcidas por questões sociais”.
É um exercício difícil para qualquer pessoa compreender que a realidade em que ela vive vai se desintegrar e uma nova vai surgir
O papel da escolaridade e da desigualdade
A ideia corrente de que ter um diploma universitário vai garantir um bom emprego perde força em momentos de grave crise econômica, como durante e depois da pandemia. A pesquisa GET Youth 2020, da OIT, mostra que a disponibilidade de mão de obra com formação superior no mercado de trabalho supera a demanda por esse tipo de qualificação. “Não estão sendo criados empregos suficientes para esses jovens, o que significa que o potencial de milhões de pessoas não está sendo aproveitado adequadamente”, segundo Sukti Dasgupta, diretora da divisão de políticas de emprego e mercado de trabalho da organização.
No Brasil, que sofreu sucessivas ondas de recessão desde o começo da década, os recém-formados encontram mais dificuldades. Um levantamento recente da empresa de consultoria IDados revelou que 40% da juventude com ensino superior são “sobre-educados” para os cargos que ocupam, ou seja, não têm um emprego que condiz com a sua qualificação, muitas vezes exercendo funções que não precisam de faculdade. O cenário pode piorar com a crise do coronavírus e a diminuição das oportunidades.
No entanto, para as pessoas com menos escolaridade a realidade é ainda mais dura, porque elas terão que enfrentar, além do desemprego, o risco de automação de alguns postos de trabalho +. Tanto a OIT quanto a OCDE alertam que a probabilidade de ser substituído por um robô é maior entre os trabalhadores com menor renda e educação, situação que deve se agravar com o aumento do abandono escolar em virtude da pandemia.
O relatório Dream Jobs, da OCDE, mostra que há baixa ambição em relação aos estudos e um alto nível de descrença na conclusão do ensino superior entre os alunos mais pobres, mesmo aqueles que apresentam bom desempenho na escola. “Os jovens de origens socioeconômicas desfavorecidas, incluindo o baixo nível de educação de seus pais, tendem a ter acesso mais fraco à educação de qualidade”, explica Scarpetta. “Em outras palavras, a baixa mobilidade social e as desvantagens tendem a se perpetuar de pai para filho. E, claro, os jovens desfavorecidos estão cientes disso e têm poucas expectativas sobre o futuro.”
Esse é um contexto que leva a juventude mais vulnerável a postos mais precarizados, segundo a pesquisadora Ludmila Abílio, do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit – Unicamp). “Em um processo de degradação das funções, quanto mais se precariza, mais se ‘juveniliza’ a profissão”, afirma ela em entrevista a Gama. Abílio menciona os motoqueiros e bikeboys de aplicativos como um exemplo de trabalho “do futuro” possível: quanto mais degradada a ocupação, mais acessível ela se torna para os jovens pobres.
Eles são justamente os grandes afetados pelas crises econômicas, porque muitas vezes estão em empregos informais e instáveis, de baixa remuneração. “A juventude periférica busca estratégias de sobrevivência em formas de ocupação rotativas e que exigem pouca qualificação”, observa a pesquisadora. Um estudo da consultoria IDados aponta que 71% dos jovens que ingressam informalmente no mercado continuam na informalidade depois de cinco anos e que ter formação técnica ou profissionalizante é relevante para diminuir a rotatividade entre empregos.
Não existe forma mais rápida, eficaz e garantida de diminuir a pobreza do que o acesso ao ensino e à educação. A relação entre os anos que a pessoa estuda e a renda é totalmente direta
Os caminhos possíveis
Ainda que um cenário econômico precário influencie na garantia de vagas, investir na educação continua sendo a principal alternativa para tornar o panorama do futuro do trabalho menos pessimista para as novas gerações. “Não existe forma mais rápida, eficaz e garantida de diminuir a pobreza do que o acesso ao ensino e à educação. A relação entre os anos que a pessoa estuda e a renda é totalmente direta”, diz Cezar Almeida. Ele explica que isso, no fim, também é bom para mercado, já que jovens educados pelo menos a nível médio compõem uma mão de obra mais preparada e produtiva.
Nesse processo de formação, conhecer novas possibilidades também ajuda a juventude a ampliar as ambições profissionais. A OCDE sugere a figura de um orientador de carreira nas escolas, tanto para estimular a continuidade dos estudos quanto para apresentar a realidade do mercado de trabalho “Investir em adolescentes significa dar a todos eles acesso a habilidades que serão essenciais, seja qual for o trabalho que desempenharão no futuro”, defende Scarpetta. “Podemos não saber os nomes de muitos desses empregos, mas conseguimos prever muitas das tarefas que serão exigidas.” Ele enumera a habilidade de resolução de problemas usando ferramentas digitais, a comunicação e o trabalho de equipe como algumas das capacidades fundamentais.
Mesmo com essas medidas, pode ser necessário encontrar mecanismos para garantir a sobrevivência e as necessidades básicas, sobretudo em momentos de crise. Não à toa, propostas de renda básica universal começam a se popularizar pelo mundo, em meio às incertezas que as graves recessões econômicas e a automação trazem para o futuro. “Já vimos em crises anteriores que os jovens tendem a ser atingidos de forma desproporcional pela perda de empregos e pela baixa contratação. É essencial destinar recursos públicos para apoiar os que já entraram ou estão prestes a entrar no mercado de trabalho”, conclui Scarpetta.
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