Vicente Cândido
A falta de uma estratégia clara, unificada e bem definida para a retomada das atividades pós-pandemia deixou gestores e dirigentes, não só do futebol, mas de tantos outros setores da economia, desorientados num dos momentos mais desafiadores da história da humanidade.
A absoluta necessidade de sobrevivência levou uma maioria alargada dos dirigentes do futebol a defender a volta dos jogos sem público o quanto antes, já que este setor da economia praticamente não contou com nenhuma ajuda do poder público, que se resumiu a uma suspensão provisória de pagamentos de tributos. Daí a necessidade de dar continuidade aos certames.
Apesar dos obstáculos a serem superados, acreditamos fortemente que, com os devidos cuidados, podemos, para além da retomada econômica, ser também um veículo de mensagem positiva e de entretenimento para milhares de brasileiros que admiram e desfrutam o futebol.
Em casa, cumprindo o isolamento social, esses torcedores terão também no seu cardápio uma boa opção de lazer e de combate ao estresse. Dado o alcance social do futebol, trata-se ainda de processo pedagógico na direção inevitável do gradual retorno que todos os ramos de atividade humana terão de enfrentar, mais dia menos dia.
A retomada do futebol no nosso país aconteceu após inúmeras discussões entre médicos, tanto os que participam do a dia a dia do futebol quanto infectologistas e profissionais de outras especialidades, com o objetivo de minimizar ao máximo os riscos de que qualquer trabalhador envolvido em sua operação pudesse ser acometido pela doença. Não por acaso a experiência, até aqui, tem sido muito bem realizada e avaliada.
Para tal, foram discutidos e estabelecidos protocolos para que tivéssemos um retorno gradual e seguro das atividades, até que pudéssemos chegar ao momento dos jogos, o que vem se desenrolando de forma bem-sucedida desde a conclusão de várias competições estaduais.
Esses protocolos se basearam sempre na maior segurança possível, tendo como prioridade o controle da saúde de todos os envolvidos, por meio da realização de vigilância epidemiológica e testes para diagnóstico precoce de pessoas infectadas pela Covid-19 e controles rigorosos da disseminação da infecção.
Certamente o futebol é um dos setores em que está sendo realizado o maior número de testes para a detecção da Covid-19, o que nos traz muita segurança para manter a sua retomada, tendo foco principal na saúde —tanto dos profissionais envolvidos quanto de seus familiares.
Até o momento verificamos que, apesar de acontecerem situações de aparecimento da enfermidade com alguns times de futebol, isso ocorreu exatamente por serem feitos testes para Covid-19 e, de forma precoce, seus diagnósticos surgirem como um norte para medidas imediatas de proteção sanitária.
Foi desta forma que puderam ser realizadas as medidas necessárias para tratamento, incluindo o isolamento —o que comprovadamente diminui as taxas de transmissão da doença.
A defesa da continuidade dos jogos é embasada em ciência e, assim como a Europa já demonstrou, essa retomada consciente vem ocorrendo sem grandes percalços.
Através do futebol, e de um sistema rigoroso de controle e testagens, podemos entender melhor a respeito dessa doença e, com isso, até colaborar com a comunidade científica e as autoridades em ações futuras.
Não é que o Covidão-20 deva ser paralisado. Nem deveria ter começado.
Simplesmente porque não havia razão alguma para acreditar na capacidade da CBF em estabelecer protocolo minimamente confiável para a realização do campeonato.
Se o governo federal e seu militarizado Ministério da Saúde são inaptos ao cuidar da pandemia de Covid-19, por que confiar numa entidade reconhecidamente nebulosa e incompetente?
Deixemos as coisas claras.
Ao contrário do acontecido na Europa, onde o futebol recomeçou com a pandemia controlada, aqui voltou sem a curva dar sinais de queda.
Voltou só porque a irresponsabilidade do presidente da República, depois de dizer diversas vezes considerar exagerada a paralisação, pressionou pelo retorno e até concedeu uma medida provisória, a MP do Flamengo, como moeda de troca.
Inegável que a pausa agravou a situação pré-falimentar da maioria dos clubes brasileiros, mas, a exemplo da economia do país, a palavra é esta: agravou, não causou a crise.
Além do mais, pode-se argumentar que a flexibilização ampla, geral e irrestrita das medidas de isolamento social pelo Brasil afora permitiu indagar por que não jogar futebol.
Os cúmplices da necropolítica dizem que o retorno açodado dos jogos ajuda na sensação de normalidade, por mais anormal que seja termos mais de 110 mil mortes.
Explique para uma criança desejosa de jogar bola os motivos pelos quais você não permite a brincadeira. "Mas mamãe, mas papai, mas vovô, o Corinthians está jogando, por que eu não posso?", ela perguntará, repleta de razão.
Examinemos o protocolo da CBF, driblado sucessivamente pelo novo coronavírus com adiamento de partidas, tantos são os jogadores que testaram positivo.
As tais medidas de segurança sequer impediram que o time do Imperatriz, do interior do Maranhão e da Série C, fizesse, de ônibus e avião com escalas, viagem de 1.600 quilômetros até Campina Grande, na Paraíba, com 12 jogadores positivados. E não houve jogo.
Ou que o São Paulo fosse até Goiânia, entrasse em campo e visse a partida adiada porque seu adversário, o Goiás, tinha dez jogadores contaminados, oito deles titulares.
Ou que o treinador do Fluminense, Odair Hellmann, no Maracanã, fosse mandado para casa porque também tinha testado positivo —e comandado treinamentos nessa situação.
Já o gaúcho Ypiranga, de Erechim, viajou 11 horas de ônibus até Brusque, em Santa Catarina, sem saber o resultado dos testes. Ao chegar, soube que seis jogadores estavam com a Covid-19.
Ora, deixemos de brincar com a vida das pessoas, dos atletas e de todos os envolvidos numa disputa de futebol, com delegações voando em aviões de carreira para cima e para baixo.
Nada justifica botar em risco a vida de uma só pessoa por causa de jogos de futebol, rigorosamente não essenciais, por mais apaixonantes que sejam.
Compare com a fase final da Liga dos Campeões da Europa, confinada em Lisboa. Ou com a NBA, na bolha da Disney.
Aqui é uma farra. Os jogadores jogam e vão para casa, transitam por aí normalmente, pois está tudo normalizado diante, afinal, da inevitabilidade da morte. E daí?
Na Argentina, com menos de 7.000 mortos e cerca de 300 mil casos, contra mais de 3 milhões no Brasil, só agora os clubes voltaram —e apenas aos treinos.
O Covidão-20 seguirá impávido colosso. Resta torcer para terminar sem vítima fatal.
Quem será o campeão, ou se classificará para a Libertadores, ou cairá para Série B é o menos importante.
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