Há filósofos cujas vidas dariam eletrizantes séries da Netflix. Bons exemplos incluem Sócrates, Wittgenstein e Walter Benjamin. Há outros que levaram existências menos atribuladas, para não dizer aborrecidas. O caso paradigmático é o de Kant, que nunca saiu de sua cidade natal e que era tão metódico que o pessoal de Königsberg acertava o relógio da igreja pelo horário em que ele saía para seu passeio diário.
Søren Kierkegaard (1813-55) não chega a ser um Kant, mas joga em seu time. O que de mais dramático lhe aconteceu foi ter rompido o noivado com Regine Olsen, episódio que o assombraria pelo resto da vida e definiria muito de sua filosofia. Também fez duas viagens mais extensas a Berlim. O resto do tempo ele passou em Copenhague, dividido entre a vida social e a escrita. Escrevia compulsivamente. A edição crítica de sua obra completa “mede” 55 volumes. E isso porque morreu jovem, com apenas 42 anos.
Em “Philosopher of the Heart” (filósofo do coração), Clare Carlisle se propõe a fazer uma biografia kierkegaardiana de Kierkegaard. Acho que consegue. Embora adote um método heterodoxo (não cronológico), ela é capaz de retratar os momentos mais importantes da vida do autor e ainda nos esclarecer sobre sua filosofia. Ajusta-se, assim, ao aforismo de Kierkegaard, segundo o qual a vida tem de ser vivida prospectivamente, mas só pode ser compreendida retrospectivamente.
Kierkegaard ocupa um lugar decisivo na história das ideias por ter trazido o indivíduo para dentro da filosofia. É considerado o pai do existencialismo. Não obstante (ao menos para nós que nos acostumamos a equiparar existencialismo a Sartre), era um cristão devoto, ainda que “sui generis”. À maneira de Sócrates, considerava ser sua missão fazer com que seus compatriotas se livrassem das ilusões, a começar pela de que as igrejas ensinam o cristianiasmo. Nada mais atual no Brasil de hoje.
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