Conta a lenda que Peter Sellers, tão logo leu o livro de Jerzy Kosinski, Being There (Muito Além do Jardim) em 1971, escreveu uma nota para o autor. “Meu jardim está aberto à sua disposição. Sou Chance.” Chance é o personagem central de Kosinski, um homem que passou a vida toda recluso, vendo TV, e que agora repete as máximas que ouviu em incontáveis programas, da boca dos mais incríveis personagerns, como se fossem verdades absolutas. Chance foi pioneiro da auto-ajuda. Ao transpor o limite do seu jardim torna-se o principal conselheiro do presidente dos EUA, tal já era o estado do mundo há 40 anos.
No Brasil, o livro chamou-se O Videota. Encantado com o filme Harold e Maude/Ensina-me a Viver, Sellers cooptou o diretor Hal Ashby para o projeto. O cineasta levou a solicitação à empresa Lorimar, mas pediu tempo, porque já estava comprometido com outros filmes. Kosinski aceitou vender os direitos, com uma condição – Sellers teria de ser o protagonista. Rumores começaram a circular na indústria. Laurence Olivier foi sondado para fazer o milionário Benjamin Rand, mas declinou. Entraram em cena Melvyn Douglas e Shirley MacLaine. Melvyn ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante de 1979, Peter Sellers foi indicado para melhor ator, mas perdeu para o Dustin Hoffman de Kramer vs. Kramer, de Robert Benton. Ambos venceram o Globo de Ouro - Sellers como melhor ator de comédia ou musical, Douglas como coadjuvante. Repetidas vezes Sellers fez saber que considerava Chance o maior personagem de sua carreira, e sua interpretação, a mais apurada. Não é pouca coisa.
Peter Sellers vinha atuando no cinema inglês desde os anos 1950, mas foi nos 60 que virou astro. O público encantou-se com a comédia de Blake Edwards, A Pantera Cor de Rosa, de 1963, que impôs, de uma só vez, duas figuras que ficaram célebres – o desastrado Inspetor Clouseau/Sellers e a Pantera, personagem de animação que saltou dos créditos para ganhar identidade própria numa série para TV. Edwards seguiu formatando comédias para o Inspetor Clouseau, e Sellers virou um favorito do público. Em 1962, teve seu primeiro encontro com Stanley Kubrick - em Lolita. Logo veio a sátira política Dr. Fantástico, um marco na evolução kubrickiana. Sellers interpreta três personagens que colocaram à prova sua extraordinária versatilidade - o Capitão Mandrake, o presidente Muffley e o cientista atômico Dr. Strangelove, preso à cadeira de rodas e com o braço sempre pronto para disparar a saudação nazista.
E ainda houve O Que É Que Há, Gatinha?, a comédia escrita e interpretada por Woody Allen, de 1965, com direção de Clive Donner. Em meados da década, Londres tornara-se o centro das mudanças comportamentais que agitavam o mundo. Peter O'Toole fazia o homem obcecado por todas as mulheres do mundo. Apaixonado por Romy Schneider, ele hesita em abandonar todas as outras por ela. Vai parar no divã do Dr. Fritz Fassbender, que não é outro senão Sellers, no papel do psiquitra mais maluco que já cruzou a tela. O próprio Allen reservou-se um papel, o do tímiddo neurótico que passa o filme catando as migalhas de amor e sexo que sobram da farra de Michael James, isto é, O'Toole. Ninguém seria louco de considerar Gatinha uma grande comédia ou Donner um grande diretor, mas o filme captou o espírito da época, embalado na trilha de Burt Bacharach e na voz de Tom Jones, com o refrão What's new pussycat? Oh, oh, oh.'
Talvez não tenha havido outro ator de comédias como Peter Sellers nos anos 1960 e 70. Foi uma época em que o gênero floresceu na Itália com grandes mestres - Dino Risi, Mario Monicelli, Luigi Comencini - e grandes atores - Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi, Nino Manfredi. Em Hollywood, havia Jerry Lewis, Mel Brooks e Woody Allen deixava a stand up para iniciar sua carreira de autor. Mas havia algo de especial em Sellers. Em 1968, e uma vez mais sob a direção de Edwards, ele interpretou outro de seus personagens emblemáticos – Hrundi Bakshi, o ator indiano que, após destruir um set de filmagem no estilo de Gunga Din, entra de penetra na festa de um grande produtor de Hollywood e a destroi também. Há uma espécie de inocência no convidado bem trapalhão. Ele parece não ter consciência dos estragos que promove. Uma cena é exemplar, Hrundi na privada. Ele puxa o papel higiênico e olha, sem nenhuma emoção, equanto o rolo roda até o fim. Só um grande diretor, e um grande ator, para não perder o timing da piada.
É essa mesma inocência que caracteriza Chance, em Muito Além do Jardim - o título brasileiro. Roger Ebert, o conhecido crítico norte-americano, conta que teria ouvido do próprio Sellers a seguinte definição - “Não tenho personalidade alguma, sou um camaleão. Quando não estou representando um papel, sou 'nobody', ninguém.” Sellers falava dele, mas poderia estar explicando Chance. A vida toda esse homem viveu nessa casa, cuidando do jardim e vendo TV. De cara, ele se anuncia, 'Chance... the Gardener', mas para quem o ouve soa como Chauncey Gardner, um nome. De tanto ver TV, o medium cool de Marshall McLuhan, Chauncey, ou Chance, repete as maiores banalidades do mundo como se fossem verdades absolutas. Isso faz dele uma celebridade - amigo de milionários, conselheiro do presidente. No íntimo, ele sabe - “I'll be always a little boy".
A frase, na verdade, é da cozinheira Louise, que assim o rotula. Quando morre o dono da casa - não sabemos sua exata relação com Chance -, ele é lançado no mundo. Atarantado, é atropelado pela limusine da milionária Sra. Rand (Shirley), cujo marido (Melvyn Douglas) está morrendo. O médico e a própria Shirley poderiam desmascarar Chance, mas na verdade ele proporciona tamanha paz ao moribundo que ambos entram na farsa do guru. Por meio de Douglas, torna-se conselheiro do presidente (Jack Warden) e, eventualmente, poderá ser o próximo presidente. O ponto de Ashby - e Kosinski - é que um homem wasp, que usa ternos bem cortados, provavelmente do velho dono da casa, e usa um chapéu coco, que fala mansamente e com aparente segurança, pode encarnar alguma coisa - um desejo - no inconsciente coletivo. Ao contrário da juíza paranaense que escreveu na sentença - “Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça” - negra -, Chance vira guru por ser branco, bem vestido e bem falante, não importa as bobagens que diga.
O final é o mais inesperado possível. Sem explicação alguma, Chance, com seu chapéu coco e o guarda-chuva, caminha sobre as águas do lago. A associação mais óbvia é com o Cristo. Ashby transfere para o público a responsabilidade sobre esse final. O filme concorreu em Cannes, em 1980, no ano de All That Jazz – O Show Deve Continuar, de Bob Fosse. Os anos 1970 haviam marcado um ponto abissal na descrença dos cidadãos dos EUA com suas instituições, por conta da Guerra do Vietnã e do escândalo Watergate, que levou à renúncia do presidente Richard M. Nixon. Ashby iniciou-se como montador - ganhou o Oscar da categoria por No Calor da Noite, de Norman Jewison, em 1967. Como diretor, foi sempre atraído por personagens que não se enquadram nas normas - a velhinha sacudida de Ensina-me a Viver, os dois guardas militares que relaxam a vida do prisioneiro de A Última Missão, o cabeleireiro mulherengo de Shampoo e o sindicalista de Esta Terra É Minha Terra.
Chance foi seu personagem limite - mais bizarro? -, servindo a um comentário sobre a política na era da massificação da TV. Hoje talvez fosse possível refazer Muito Além do Jardim, substituindo a TV pelas redes sociais e pelas fake news. A questão sobre quem é o videota permanece mais atual que nunca. Somos treinados para responder automaticamente às Alexas que querem determinar nossas vidas em nome da praticidade. As pessoas estão abrindo mão de pensar, de escolher. O algoritmo já está fazendo isso por elas. Ashby, com seus filmes, adorava cutucar, ou incomodar, o público. Podia haver aí um erro de julgamento. As pessoas raramente estavam a fim de ser incomodadas. Apenas dois de seus filmes fizeram sucesso de verdade – Ensina-me a Viver e justamente Muito Além do Jardim. Morreu em 1988, aos 59 anos.
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