Roberto Livianu
Desde março, quarentena é uma das palavras que mais ouvimos no contexto da privação de liberdade imposta à humanidade em virtude da Covid-19. A frieza materialista com que se pratica corrupção é a mesma, na pandemia ou fora dela, mercadejando-se respiradores falsificados ou grandemente superfaturados, evidenciando-se que, diante da oportunidade para a prática ilícita —o decreto de calamidade—, as fraudes são praticadas.
Há conflitos de interesses permanentes no Brasil, e poucos se preocupam com os limites éticos inibidores que deveriam ser observados. A quarentena não médica, mas ética, é uma das mais interessantes ferramentas preventivas, porém de pouca utilização entre nós. Ela foi muito debatida nas últimas semanas após proposição feita pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, em meio a um julgamento no CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Ele sugere que juízes e membros do Ministério Público —e apenas eles— observem quarentenas de oito anos para poderem se candidatar a cargos eletivos, depois de aposentados ou exonerados. Não revelou como chegou a esse número, superior à pena aplicada para muitos homicídios cometidos no Brasil. Registre-se que em país nenhum do mundo existe período de quarentena com tamanho tempo de duração. E, na ativa, nenhum juiz hoje pode ser candidato; no MP, só quem ingressou antes de outubro de 1988.
Tudo nos leva a crer que a lógica de Toffoli partiu do raciocínio de que o poder de influência de magistrados e membros do MP, derivado de suas funções, deveria obrigá-los a cumprir quarentenas para que as competições pelo poder ficassem niveladas a outros concorrentes.
Concordo plenamente com o conceito de tais salvaguardas republicanas, desde que aplicadas de forma isonômica. Sem qualquer espécie de seletividade, pois a seletividade estraçalha a proposição. A meu ver, portanto, todas as atividades cujos agentes possam ter poder de influência relevante devem observar quarentena equivalente para que se assegure competitividade.
Refiro-me a quem atua nas polícias, por exemplo. É óbvio que, pela natureza de suas funções, policiais lidam com o público, adquirem influência, e o serviço que prestam pode gerar potencial político —da mesma forma que os defensores públicos. Hoje, no Congresso Nacional, temos dezenas de policiais e defensores públicos que não cumpriram quarentena para suas candidaturas. A regra deverá valer também para os oficiais das Forças Armadas e para a advocacia pública, qualquer que seja o nível —federal, estadual ou municipal.
Agora vamos alterar o plano da análise para outra esfera, na qual penso que a lógica não deveria ser diferente. Vamos a um líder associativo, que tenha amealhado poder de influência em virtude dessa militância: deve-se observar quarentena. A competição ficaria desequilibrada com os demais se ele não a respeita.
E o líder religioso? É equilibrada uma disputa em que ele se desligue da atividade e imediatamente se lance candidato a cargo eletivo? Isso é respeitoso aos demais postulantes ao poder que não tiveram a mesma oportunidade? E os comunicadores, influenciadores digitais e apresentadores de televisão, que constroem elos profundos com os eleitores, que tocam suas almas, capturando-as pedaço por pedaço, dia após dia. Seria justo, ético e razoável que todos eles também observassem a quarentena.
E as quarentenas para evitar aventuras políticas de indivíduos que se elegem prefeitos apenas para usar o mandato como trampolim para, dois anos depois, elegerem-se governadores? E as quarentenas para evitar que indivíduos se elejam vereadores ou deputados e, cuspindo nos votos dos eleitores, assumam outros cargos politicamente mais interessantes em secretarias ou ministérios, deixando o mandato eletivo nas mãos de alguém literalmente desconhecido?
E a Procuradoria-Geral da República, que lidera uma instituição defensora constitucional da ordem jurídica e do regime democrático —não seria o caso de haver uma quarentena em relação à nomeação aos cargos de ministro do STJ, do TCU ou do STF? Quarentenas jamais poderão ser pensadas seletivamente. Devem respeitar o princípio da igualdade de todos perante a lei.
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