segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A pandemia acabou?, OESP

 Daniel Martins de Barros*, Da Redação

24 de agosto de 2020 | 05h00

Qual a diferença entre uma promessa e uma ameaça? Ambas visam a influenciar alguém, mas a promessa implica numa recompensa: se você fizer isso, faço aquilo. Tomarei uma atitude se você agir como eu quero. Essa é a grande diferença da ameaça. Nela, nos comprometemos a não tomar uma atitude se o outro agir como quero. Ela é, em princípio, mais econômica, porque se funciona, não precisamos fazer nada. Quando são bem-sucedidas ao modificar o comportamento alheio, a promessa resulta em recompensa, enquanto a ameaça resulta em não punição.

Claro que as duas perdem imediatamente a credibilidade se não são cumpridas. Suspender suas consequências e renová-las mina muito seu poder. Quem tem medo de um castigo sempre adiado com frases como “Desta vez passa...”? E que esperança ter no prêmio que nunca chega com justificativas “Na próxima...”?

É um dos grandes motivos pelos quais a pandemia do novo coronavírus acabou para tanta gente. Ainda que mantenham suspensos seus planos de viagens aéreas ou sua presença em salas de cinema, no geral a vida parece assumir cada vez mais ares de normalidade. Porque, para elas, a ameaça não se cumpriu.

No início da pandemia, quando nos chegavam notícias de pessoas morrendo sufocadas por falta de UTI na Itália ou caminhões do exército recolhendo corpos no Equadoro quadro que se pintou para a população, intencionalmente ou não, era de que uma hecatombe se aproximava. Quando se falava em centenas de milhares de mortos, o cenário imaginado pelas pessoas era de vizinhos caindo sem ar ao nosso redor, nos fazendo tropeçar em cadáveres nas calçadas. Temos dificuldade de visualizar a diferença entre cem mil ou um milhão de pessoas – o cérebro evolui em grupos de centenas, no máximo –, então os números eram interpretados conforme o imaginário que nos foi moldado pelo cinema.

Uma vez que a curva de infectados foi achatada, evitando o colapso do sistema de saúde, é como se as ameaças não tivessem sido cumpridas. E ao não se ver cercada pelo apocalipse zumbi que imaginou, muita gente passou a agir como se tudo houvesse voltado ao normal.

Esse não é um problema só dos brasileiros nem só dessa pandemia. Estudos em outros lugares, em outras epidemias, mostram que a percepção de risco é muito maior no início do surto, quando tudo ainda é novo, ameaçador e desconhecido. Conforme o correr do tempo e o avançar da doença, embora o risco real cresça, a percepção desse risco pelas pessoas diminui, passada a novidade da situação. Há modelos que explicam a partir dessa oscilação a característica cíclica das epidemias – a gente se protege inicialmente, o tempo passa, a gente relaxa, os casos aumentam, a gente se amedronta, e assim por diante.

Mas não adianta tentar assustar a população para motivar sua adesão às medidas de segurança. O medo é um mau motivador justamente porque é transitório. Se quiséssemos utilizá-lo como alavanca para manter um comportamento, teríamos que aumentá-lo continuamente com ameaças. Mas, para isso, elas precisariam ser cada vez maiores e mais catastróficas, distanciando-se da realidade; no fim, constantemente adiadas, elas perderiam sua eficácia em promover o medo e manter o comportamento.

Movimentação em lojas na 25 de março
Ainda que mantenham suspensos seus planos de viagens aéreas ou sua presença em salas de cinema, para muitos a vida parece assumir cada vez mais ares de normalidade em meio à pandemia. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Como então podemos garantir que as pessoas se protejam? Não é por falta de informação, não é por falta de ameaça, não é por falta de evidências que elas voltam a se aglomerar sem máscara. É porque o preço que pagam é percebido como alto, por ser individual, ao passo que o benefício parece pequeno, por ser coletivo. Já a recompensa pela desobediência é imediata – livrar-se da máscara, abraçar os amigos –, mas a consequência é tardia, já que as mortes aumentam apenas semanas após as aberturas. E também acaba diluída na população.

É a velha analogia com o cinto de segurança, da qual falei há meses por aqui. Quando a situação tem esse desenho, as pessoas precisam ser obrigadas a mudar seu comportamento, com fiscalização, multa, restrição de direitos, penalidades que individualizem o custo pela infração. Sem isso, não adianta estampar manchetes com números de mortes. Nada convence a mudar de comportamento quem sente que a pandemia já acabou. 

*DANIEL MARTINS DE BARROS É PSIQUIATRA

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