Daniel Martins de Barros*, Da Redação
24 de agosto de 2020 | 05h00
Qual a diferença entre uma promessa e uma ameaça? Ambas visam a influenciar alguém, mas a promessa implica numa recompensa: se você fizer isso, faço aquilo. Tomarei uma atitude se você agir como eu quero. Essa é a grande diferença da ameaça. Nela, nos comprometemos a não tomar uma atitude se o outro agir como quero. Ela é, em princípio, mais econômica, porque se funciona, não precisamos fazer nada. Quando são bem-sucedidas ao modificar o comportamento alheio, a promessa resulta em recompensa, enquanto a ameaça resulta em não punição.
Claro que as duas perdem imediatamente a credibilidade se não são cumpridas. Suspender suas consequências e renová-las mina muito seu poder. Quem tem medo de um castigo sempre adiado com frases como “Desta vez passa...”? E que esperança ter no prêmio que nunca chega com justificativas “Na próxima...”?
É um dos grandes motivos pelos quais a pandemia do novo coronavírus acabou para tanta gente. Ainda que mantenham suspensos seus planos de viagens aéreas ou sua presença em salas de cinema, no geral a vida parece assumir cada vez mais ares de normalidade. Porque, para elas, a ameaça não se cumpriu.
No início da pandemia, quando nos chegavam notícias de pessoas morrendo sufocadas por falta de UTI na Itália ou caminhões do exército recolhendo corpos no Equador, o quadro que se pintou para a população, intencionalmente ou não, era de que uma hecatombe se aproximava. Quando se falava em centenas de milhares de mortos, o cenário imaginado pelas pessoas era de vizinhos caindo sem ar ao nosso redor, nos fazendo tropeçar em cadáveres nas calçadas. Temos dificuldade de visualizar a diferença entre cem mil ou um milhão de pessoas – o cérebro evolui em grupos de centenas, no máximo –, então os números eram interpretados conforme o imaginário que nos foi moldado pelo cinema.
Uma vez que a curva de infectados foi achatada, evitando o colapso do sistema de saúde, é como se as ameaças não tivessem sido cumpridas. E ao não se ver cercada pelo apocalipse zumbi que imaginou, muita gente passou a agir como se tudo houvesse voltado ao normal.
Esse não é um problema só dos brasileiros nem só dessa pandemia. Estudos em outros lugares, em outras epidemias, mostram que a percepção de risco é muito maior no início do surto, quando tudo ainda é novo, ameaçador e desconhecido. Conforme o correr do tempo e o avançar da doença, embora o risco real cresça, a percepção desse risco pelas pessoas diminui, passada a novidade da situação. Há modelos que explicam a partir dessa oscilação a característica cíclica das epidemias – a gente se protege inicialmente, o tempo passa, a gente relaxa, os casos aumentam, a gente se amedronta, e assim por diante.
Mas não adianta tentar assustar a população para motivar sua adesão às medidas de segurança. O medo é um mau motivador justamente porque é transitório. Se quiséssemos utilizá-lo como alavanca para manter um comportamento, teríamos que aumentá-lo continuamente com ameaças. Mas, para isso, elas precisariam ser cada vez maiores e mais catastróficas, distanciando-se da realidade; no fim, constantemente adiadas, elas perderiam sua eficácia em promover o medo e manter o comportamento.
Como então podemos garantir que as pessoas se protejam? Não é por falta de informação, não é por falta de ameaça, não é por falta de evidências que elas voltam a se aglomerar sem máscara. É porque o preço que pagam é percebido como alto, por ser individual, ao passo que o benefício parece pequeno, por ser coletivo. Já a recompensa pela desobediência é imediata – livrar-se da máscara, abraçar os amigos –, mas a consequência é tardia, já que as mortes aumentam apenas semanas após as aberturas. E também acaba diluída na população.
É a velha analogia com o cinto de segurança, da qual falei há meses por aqui. Quando a situação tem esse desenho, as pessoas precisam ser obrigadas a mudar seu comportamento, com fiscalização, multa, restrição de direitos, penalidades que individualizem o custo pela infração. Sem isso, não adianta estampar manchetes com números de mortes. Nada convence a mudar de comportamento quem sente que a pandemia já acabou.
*DANIEL MARTINS DE BARROS É PSIQUIATRA
Nenhum comentário:
Postar um comentário