A Puerta del Sol, no centro de Madri, é o marco zero para contar as distâncias das estradas da Espanha até a capital. Mas, desde 20 de agosto, carros e outros veículos não podem chegar até ali. O lugar passou a ser todo reservado para pedestres e ciclistas.
A medida faz parte de um programa de restrição a carros no centro da cidade, iniciado na gestão anterior, de Manuela Carmena (2015-2019), de esquerda, e que segue no governo de José Martinez-Almeida, de direita.
A mudança busca reduzir a poluição do ar, para que Madri possa atingir as metas estabelecidas pela União Europeia.
Apesar do nome, a Puerta del Sol é uma praça, sem vestígios do portal de entrada da cidade que um dia esteve ali, quando a capital era cercada por muros. A partir dela, descendo algumas ruas na direção do sol poente, chega-se ao palácio real.
Hoje há um chafariz, em volta do qual as pessoas sentam nos fins de tarde —que no verão têm luz do dia até 22h. Bandas e artistas de rua se apresentam e buscam atrair a atenção e as moedas de turistas.
A praça tem uma pequena estátua de um urso se apoiando em uma árvore, cena que é símbolo da cidade, e um enorme e antigo anúncio em neon no topo de um prédio, com uma garrafa de vinho sorrindo e usando chapéu. É de Tio Pepe, vinho que promete o “sol da Andaluzia engarrafado”.
As estátuas da praça serão rearranjadas, como parte de uma reforma que deve começar em 2021 e durar um ano. Mais bancos serão incluídos, para tornar o local mais agradável. Ao todo, foram liberados cerca de 5.000 m² aos pedestres, equivalentes a meio campo de futebol.
No centro de Madri, há várias ruas abertas apenas a pedestres, em um bom exemplo de uso variado: lojas e restaurantes no térreo, com escritórios e moradias acima.
A região passou por várias reformas que foram reduzindo o espaço dos automóveis. Em 2017, sob Carmena, foi iniciada uma ampla reforma no centro. Na vizinha Gran Via, avenida mais famosa da cidade, pistas de carros deram lugar a calçadas e ciclovias mais largas.
No fim de 2018, entrou em vigor um veto a veículos mais antigos e poluentes em uma área de 5 km² do centro. O caminho é livre para automóveis elétricos ou híbridos (que poluem menos), para carros de moradores e em algumas outras situações, como para emergências.
"Este governo entende a sustentabilidade como um compromisso, não como uma carta de intenções", disse o prefeito Martínez-Almeida, ao anunciar a mudança.
O Más Madrid, principal coligação de oposição, apoiou a alteração, mas a considera insuficiente e pede que mais partes da cidade recebam intervenções desse tipo.
Já um grupo de moradores da região fez críticas. "Vai aumentar o isolamento dos moradores e criar um entorno desenhado para o turista, e não para a vida diária", reclamou a Associação de Vizinhos de Las Cavas-La Latina, em uma rede social.
Segundo o jornal El Español, a área central concentra dois terços de toda a atividade turística de Madri e soma mais de 700 hotéis e locais de hospedagens. A região tem também vários bares e baladas, que geram movimento até de madrugada.
Uma das queixas dos moradores é que a retirada de linhas de ônibus da região dificulta a circulação de idosos. A região conta com várias estações de metrô, mas usá-las demanda caminhar por mais tempo.
Em um protesto, na segunda (24) um grupo de cerca de 20 idosos ficou parado em um ponto onde já não passa nenhum coletivo. Eles disseram que usavam a linha para tarefas de rotina, como ir a um centro de lazer.
A medida divide os comerciantes, segundo a mídia espanhola. Alguns avaliam que facilitar a circulação dos pedestres trará mais clientes. Outros temem que as melhorias vão gerar aumento nos aluguéis comerciais, o que poderia levar alguns a ter de se mudar.
Em meio à pandemia, várias cidades do mundo têm buscado retirar espaço dos carros para melhorar a circulação dos pedestres e abrir terreno para a colocação de mesas ao ar livre, permitindo a reabertura de restaurantes com mais segurança.
Já o fechamento das áreas centrais para carros é um debate que vem de longe.
Boa parte do que são hoje os centros metropolitanos foi estabelecida antes do automóvel. Nos anos 1970, as ruas estreitas já não davam conta de comportar a grande quantidade de carros e pedestres ao mesmo tempo. Começou então uma onda de fechar as vias aos veículos, que resolveu um problema mas gerou outros. Nessa época, lugares como São Paulo e Rio de Janeiro ganharam calçadões.
“O fechamento nos anos 1970 foi uma tentativa de ajudar o comércio de rua, em meio ao surgimento dos shopping centers”, conta Angélica Alvim, diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie.
Isso ajudou a manter as ruas cheias de frequentadores durante o dia, mas muitas se tornaram desertas e perigosas à noite e nos fins de semana, especialmente por falta de moradores.
“A pedestrianização precisa ser feita como parte de uma ação integrada, que estimule a moradia e as atividades de lazer, para que haja pessoas circulando sempre e, com isso, haja sensação de segurança”, aponta Alvim.
“Nas cidades europeias, há uma tradição de se morar em áreas centrais. Isso não é tão comum nas metrópoles americanas. Em São Paulo, temos muitos prédios vazios, parte deles com ocupações, que poderiam ser adaptados para serem moradias de fato”, aponta Alvim.
Para Renato Cymbalista, professor de urbanismo da USP e da Uninove, a onda atual de abertura a pedestres tem relação com as novas tecnologias, pois elas reduzem a necessidade de ter carro próprio e de fazer deslocamentos diários.
“Posso andar dois quarteirões e chamar um carro por app só quando precisar, em vez de me preocupar em ter uma vaga de garagem. Isso dá um novo fôlego para as vias para pedestres”, avalia.
Cymbalista também ressalta a redescoberta das áreas urbanas como espaço de lazer, como no caso da avenida Paulista e da praça Roosevelt, em São Paulo, que atraíam grandes públicos interessados em curtir o fim de semana ao ar livre, antes da pandemia.
“Mais pessoas têm buscado morar perto de atividades que podem ir a pé, e em lugares bem-servidos de transporte público, que garantem acesso a muitas partes da cidade, de forma mais eficiente do que o automóvel”, compara.
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