Natália Pires
Em meio à pandemia, uma justificativa trazida por juíza/es para denegar pedidos de liberdade de pessoas presas é a informação de que as autoridades penitenciárias fizeram o suficiente para lidar com a crise sanitária nos presídios.
No artigo anterior, discuti como esta deferência à administração pública entra em contradição com outras demandas de saúde, de pessoas em liberdade, que chegam às cortes e recebem tratamento diverso. Mas, mesmo se levarmos a sério o argumento de que juíza/es dependem das informações das SAPs e do Depen para saber da situação do sistema prisional, o fato é que a qualidade do que é divulgado pela administração é um problema em si.
Olhemos primeiro para os dados do Depen. A plataforma interativa promete informações sobre a pandemia no Brasil e no mundo, com dados por região e estado sobre o total de pessoas testadas, de casos suspeitos e confirmados e total de óbitos. Mas faltam dados sobre a evolução destes números, as características das pessoas testadas (gênero, raça e comorbidades) e que unidades prisionais têm sido afetadas. Essas informações são cruciais para testar a consistência diária dos dados divulgados (evitando fraudes) e, principalmente, determinar se as medidas adotadas até agora (como suspensão de visitas, distribuição de equipamento de proteção ou isolamento de casos suspeitos) estão sendo efetivas no combate à pandemia.
A divulgação de informações das secretarias estaduais também é precária. Uma busca pelas páginas eletrônicas dos governos estaduais dos 26 estados e DF mostra que 8 deles não divulgam qualquer acompanhamento sobre a Covid no sistema prisional e apenas 10 dedicam espaço específico a esses dados nas páginas das secretarias de administração penitenciária.
A falta de informação é especialmente cruel para as famílias das pessoas presas. Segundo survey realizado pela FGV, quase 79% dos familiares entrevistados afirmaram não ter informações ou contato com parentes preso/as desde o início da pandemia. A própria defensoria pública relata que enfrenta dificuldades em saber o que acontece nos presídios, com acesso restrito inclusive para advogadas/os.
A falta de informação consistente e atualizada sobre o sistema prisional não é algo isolado à pandemia: é parte estrutural da gestão prisional no Brasil. Não divulgar, ou divulgar informações limitadas e contraditórias, ajuda a esconder violações e protege as autoridades públicas de responsabilização. A falta de transparência faz o sistema funcionar em tripla escuridão —pessoas em privação de liberdade são mantidas invisíveis, administradora/es definem seu destino nas sombras, e juíza/es decidem (talvez até confortavelmente) no escuro.
Natália Pires é doutora em direito constitucional pela Universidade de São Paulo e professora de direito do Insper.
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