segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Tempos pandêmicos Juliana Sayuri, de Toyohashi (Japão) 23 de Agosto de 2020, Revista Gama

 O despertador toca às 4h45 da madrugada. Na agenda, os compromissos da manhã: Zoom em São Paulo, Rio e Delaware, Skype em Tóquio, mensagens instantâneas para Porto Alegre e Florianópolis, e-mails para Lisboa, Londres e Belo Horizonte. O relógio já marca 11h27. Não vi a hora passar, mas sinto que o dia mal começou. Instalada no Japão, a 12 fusos de diferença do Brasil, preciso adaptar horários para conseguir conversar com fontes e editores espalhados pelo mundo, graças à tecnologia. A um clique de distância digital, experimentamos novas noções temporais: atravessamos fusos e nos conectamos em tempo real, em diálogos que duram minutos (mas podem parecer intermináveis) ou horas (dissipadas num piscar de olhos). Em tempos de pandemia embalados pela dopamina digital dos apps do momento, os dias estão passando mais rápido do que o dito normal? Ou mais devagar?

Depende. Na verdade, o tempo está fragmentado. Segundo um estudo liderado pelo acadêmico americano Philip Gable, professor do Departamento de Psicologia e Neurociência da Universidade de Delaware, a pandemia de covid-19 vem provocando impactos diversos nas nossas percepções sobre o tempo. Com apoio financeiro da National Science Foundation, dos Estados Unidos, Gable desenvolveu um aplicativo para documentar impressões e comportamentos dos americanos ao longo da pandemia. A primeira amostra conta com mil participantes de todos os estados americanos, que mês a mês respondem a uma série de questões para o estudo. Confira o resultado no gráfico abaixo.

Emoções positivas nos motivam a ir para frente e tudo parece se acelerar; emoções negativas nos imobilizam e tudo parece se arrastar

Percepção do tempo durante a pandemia da covid-19

O gráfico mostra a percepção de tempo de mil participantes americanos desde o início da pandemia da covid-19 de março a maio de 2020. Atualmente, o autor está processando os dados de junho e julho. A ideia é dar continuidade à pesquisa ao menos até o fim de 2020 e, se possível, expandi-la a outros países.

48%

25%

27%

34%

37%

29%

24%

43%

33%

março

abril

maio

devagar

rápido

normal


Fonte: Philip Gable, professor do Departamento de Psicologia e Neurociência da Universidade de Delaware

“A chave para entender essas impressões diferentes sobre o tempo é o estado emocional”, diz Gable, em entrevista por Zoom, de Delaware. “O tempo voa quando estamos nos divertindo, não diz o ditado? Há um fundo de verdade no aforismo: emoções positivas, como alegria e amor, nos motivam a ir para frente e tudo parece se acelerar; emoções negativas, como dor e medo, nos imobilizam e tudo parece se arrastar”, explica o acadêmico, que pesquisa o assunto cientificamente há uma década.

No experimento, entretanto, as interações sociais nas plataformas digitais não foram fatores determinantes nas percepções. Isso porque a variável depende da natureza das interações e se o saldo delas é positivo ou negativo, destaca Gable. Passar horas a fio entre home office, lives e webinars pode ser um fardo para uns, mas pode ser uma sexta-feira ideal para outros.

Bettina Pousttchi*, Worldtimeclock, Mexico City

Pré-pandemia, cientistas como Bylon Reeves, Nilam Ram e Thomas Robinson, da Universidade Stanford, já destacavam que, a fim de avaliar o impacto da tecnologia no nosso comportamento e bem-estar psicológico, importa mais o tipo de atividade e conteúdo consumido na internet – e menos o número de horas totais que passamos diante das telas.

“Em apenas uma tela, você pode alternar instantaneamente suas atividades, entre mandar mensagem para um vizinho, assistir às notícias, cuidar de uma criança, pedir a entrega do jantar […]. Acrescente isso a usos mais problemáticos – fazer bullying, promover discurso de ódio, ou ler notícias falsas. Saber o tempo de tela de alguém – sua dose total de mídia – não vai diagnosticar problemas com qualquer um desses conteúdos”, escreveram Reeves, Ram e Robinson no site acadêmico australiano The Conversation.

Uma live pode durar uma eternidade ou um segundo. Depende do tipo de emoções que nos despertam

Não é mera impressão que as mídias sociais cresceram na pandemia: Zoom, TikTok, WhatsApp, Instagram e Facebook estão entre os aplicativos mais baixados no mundo todo e, segundo levantamento da consultoria americana Sensor Tower, o fluxo de dados movimentados no download dos 250 maiores apps aumentou 52% na pandemiaSe a internet é aliada na hora de amenizar a solidão do isolamento social, como indicam instituições internacionais de saúde, é fonte torrencial também de informações, podendo nos despertar angústia e ansiedade. Equilíbrio é a palavra. Mas como encontrar equilíbrio em épocas tão incertas?

Devagar com o andor

Sentir que o tempo passa mais rápido quando estamos felizes não é sinônimo de sentir as pressões da história acelerada. “Tempo é uma questão existencial, mas é atravessado historicamente”, pondera o psicanalista Tales Ab’Sáber, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Isto é, muda segundo as condições psicológicas do sujeito, mas também com as condições concretas da realidade. Na Idade Média, o ensaísta exemplifica, uma época em que as pessoas viviam no mesmo lugar a vida inteira, o ritmo era muito mais lento e longo – e era impactado por ares de novidade quando um viajante passava pelas vilas.

Desde a Revolução Industrial (1760-1860), na Inglaterra, e a Revolução Francesa (1789), a história se acelerou bruscamente: as transformações tecnológicas da época (as fábricas, o telégrafo, o trem, por exemplo) “encurtaram” as noções de tempo. O fenômeno é conhecido como aceleração social do tempo.

Por um lado, a sensação de que estamos estagnados; por outro, ainda mais acelerados, sob pressões de produtividade 24 horas por dia, 7 dias por semana

“É a cena clássica de Chaplin no filme “Tempos Modernos” (1936), correndo para acompanhar o ritmo das máquinas. Essa é a imagem perfeita do ritmo regulado pela produção do mundo. Desde a industrialização, esse ritmo aumentou paulatinamente. Hoje, vivemos sob um tipo de taxímetro de tempo global na internet, que mede produção e produtividade e, quem não consegue acompanhar, é empurrado para fora do bonde da história”, critica o psicanalista, em entrevista por Zoom, de São Paulo.

Nesse contexto podem coexistir dentro de nós duas impressões contraditórias sobre o tempo diante das tecnologias na pandemia: por um lado, a sensação de que estamos estagnados, acordando sempre no mesmo dia e nada acontece, mesmo com mil afazeres; por outro, a de que estamos ainda mais acelerados, sob pressões de produtividade 24 horas por dia, 7 dias por semana – nesta lógica, Zoom fatigue é para os fracos.

“Online por horas e dentro de casa por dias, não sabemos mais se é sábado ou segunda, maio ou setembro. Às vezes, corremos contra o relógio; outras, contra o tédio. São tendências ambíguas”, diz a filósofa Alyne Costa, autora de “Guerra e Paz no Antropoceno” (Autografia, 2017) e atualmente pós-doutoranda do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Bettina Pousttchi*, Worldtimeclock, Moscow

Segundo Costa, essa ambiguidade é subjetiva (nossas impressões individuais) e objetiva, pois reflete o tempo agilizado pelo impacto da ação humana na Terra – é a ideia de antropoceno. “Um vírus novo paralisou o mundo. Foi o primeiro megafreio nessa locomotiva acelerada, o efeito global de um elemento ecológico. Mas não demorou para que se alastrassem negacionismos científicos sobre a pandemia. O mundo virtual pode ter se expandido, mas o mundo político se apequenou”, analisa.

A questão também é política: ao pensarmos quando “tudo isso vai passar?” faz diferença, por exemplo, o país e a cidade onde se está na pandemia, a possibilidade de quarentena ou não, as condições de moradia, renda, raça, idade, gênero. “A sensação da passagem dos dias muda constantemente. Os sobressaltos da política do Brasil de 2020 agilizaram os dias, mas, estranhamente, parece faltar algo se não há esses sustos, como estivéssemos diante de uma tormenta que está por vir, um tempo sempre de fôlego suspenso”, define a historiadora Helena Miranda Mollo, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e uma das coordenadoras do Boletim do Tempo no projeto HuManas.

Precisamos parar e criar uma nova temporalidade, que não seja refém da tecnologia nem algoz da natureza

E, no futuro, como vamos nos lembrar dos “tempos de pandemia”? “Isolamento será a marca desse tempo, em muitos níveis: na substituição da corporalidade pela virtualidade, nas quarentenas, no isolamento do Brasil em relação ao mundo. A sensação é de uma intensa distopia. Onde estamos, afinal? Pergunto-me todos os dias”, conta a historiadora, em entrevista por e-mail, de Belo Horizonte.

Na psicanálise, diz Tales Ab’Sáber, distorções sobre o tempo na pandemia refletem como não estamos conseguindo processar o que está acontecendo: isolados, mas imersos na internet, sem parar para o luto de um mundo pré-pandemia que se foi e sem perspectiva para um futuro incerto, podemos ficar confusos, deprimidos, perdidos nas nossas próprias casas. “Dói. É um tipo de intoxicação psíquica, e é preciso processá-la.”

Para Ab’Sáber, a crise do coronavírus é um convite para repensar o ritmo do mundo. “Precisamos parar e criar uma nova temporalidade, que não seja refém da tecnologia nem algoz da natureza. Como dizia o geógrafo Milton Santos [1926-2001], tempos mais humanos que a gente queira viver e que a natureza permita. Caso contrário, esta será só a primeira grande crise dos tempos pandêmicos.”

*A artista alemã Bettina Pousttchi é autora das imagens que ilustram esta matéria. Em 2008, a artista viajou o mundo para registrar um relógio público por cada cidade que passava. O resultado foi a série de 24 fotografias “World Time Clock”, que mostra o fuso horário de diferentes cidades no mundo (no topo está “Seoul Time”, 2011).

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