‘Menino morre de Covid enquanto lutava contra câncer’. ‘Atriz da Disney morre após lutar contra câncer’. ‘Morre Neill Peart, baterista lutava contra um câncer no cérebro’. ‘Médico que lutava contra câncer há 20 anos morre nesta segunda-feira’.
Algumas doenças podem não ter cura, mas apresentam diagnósticos longos, como 20 anos por exemplo. É frustrante considerar esse tempo todo como uma batalha perdida.
Não basta estar doente, é preciso estar em um combate. Os parentes não bastam ter perdido uma pessoa amada, eles precisam ter perdido, também, uma guerra. Fica aí um fardo aos médicos e aos familiares.
Essa metáfora está enraizada em nossa cultura, mas penso se não é um bom momento para trocarmos o imperativo da guerra pela força da paz. A cultura de uma sociedade é formada em seu linguajar. A escolha de palavras perpetua hábitos.
A injustiça muitas vezes não está na perda da batalha, mas sim na falta de acesso a exames, medicamentos e tratamentos. Seria melhor se fosse: após diagnóstico tardio da doença, Bia morre com metástase no cérebro. Ou: após a falta de acesso a um medicamento, Marcos morre dez anos antes do prognóstico.
Morrer fracassado em uma luta é um cenário desanimador. E injusto porque essa pessoa não fracassou. Ela e sua família fizeram o que foi possível dentro do contexto tecnológico e social em que vivemos. Uma pessoa doente procura se curar, agrega e transforma ao invés de desejar assassinar para não ser assassinada.
Troquei ideias sobre esse tema com a co autora desse blog, Jessica Moreira. Ela me encaminhou uma ponderação feita por sua prima, a atriz Caroline Alves, que perdeu o irmão há 7 meses. “O processo de finitude de uma pessoa por conta do câncer não é um processo de luta nem de paz, mas sim de (re) existência. Existir de outras maneiras e persistir. Esses dois pólos são complicados. O polo da guerra culpabiliza quem está do lado. O de paz cobra do paciente uma positividade que às vezes é difícil ter”.
Importante esse ponto. Aproveito para expandir a abordagem da paz não ser confundida com passividade. Ao contrário, eu a compreendo como uma atitude bem ativa. Energética, mas sem o heroísmo da guerra.
Junto à essa metáfora da guerra está o conceito de heroísmo. Quem vence uma doença é aplaudido como herói. Quem perde “morreu lutando contra o câncer”. Isso pode trazer um peso a mais para o luto dos que ficam. A tristeza em sentir, em um nível mais sutil, a pessoa amada como a não-herói.
Ernest Becker, em “A Negação da Morte”, livro muito comentado por aqui, coloca os desafios da nossa visão heróica do ser humano. Ele defende as consequências negativas de nos sentirmos seres figurados do herói em combate contra o mal. Sendo o mal, no caso, a morte. De buscarmos vencer o fim, garantindo a permanência do ego.
A “Jornada do Herói” é uma estrutura narrativa do autor Joseph Campbell (1904-1987) muito popular entre os contadores de histórias justamente por trazer nossa identificação com essa fantasia. Na realidade, quem não alcança o heroísmo, se frustra na quebra de uma expectativa ficcional, mas culturalmente imposta. A decepção consigo mesmo, desse legado inalcançável, estaria na raiz do crescimento de alguns distúrbios mentais.
O presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, André Junqueira, considera o cenário de guerra e o uso de termos bélicos prejudiciais para o acolhimento da dor. Ele me encaminhou uma pesquisa sobre essa metáfora, conduzida pela Dornsife Mind and Society Center para entender o efeito desse linguajar na saúde das pessoas e na percepção do câncer.
Os resultados indicaram que ao invés de estimular as pessoas a se prevenirem, elas sentiram-se inibidas pelo medo de precisarem enfrentar uma batalha. Concluiu-se “ser claro que essa metáfora desencoraja alguns comportamentos preveníveis por sugerir que ter câncer é tão ruim quanto estar em guerra. Isso pode tornar as pessoas mais assustadas e menos propensas a ter um diagnóstico, por sugerir que o tratamento será muito cruel”.
André prefere falar com seus pacientes sobre jornada, ou caminhada, no tratamento oncológico, “pois qualquer travessia tem altos e baixos e ninguém sabe quando e como termina”.
O médico me encaminhou uma busca que fez no Google. “Pesquisei o termo no ‘morre após luta contra o câncer e achei 11.800 resultados. Pesquisei ‘morre após luta contra o Alzheimer’ e achei somente 1”.
As razões para não ser tão comum o uso de termos bélicos para Alzheimer ou doenças cardíacas é porque são doenças de evolução mais lenta se comparado a alguns tipos de câncer. Ele também comenta que “a oncologia evoluiu muito nas últimas décadas, o arsenal terapêutico ampliou muito”. A palavra arsenal terapêutico é usado no meio médico e em publicações como essa aqui.
Por fim, André tem um desejo. “Espero que mudemos essa visão, pois não existe vencedor e derrotados em doenças”.
Fica aqui sugestões alternativas:
‘Menino morre de Covid enquanto tratava um câncer avançado’. ‘Atriz da Disney morre de câncer no cérebro’. ‘Morre Neill Peart, baterista tinha câncer no cérebro’. ‘Médico que convivia com o câncer há 20 anos morre nesta segunda-feira’.
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