Morrer é fato ofensivo ou fato criminoso? A pergunta, absurda logo se vê, é tão estapafúrdia quanto é a investigação da Polícia Federal na qual o colunista da Folha Hélio Schwartsman foi intimado nesta sexta-feira (21) a depor. O suposto crime a respeito do qual Schwartsman é investigado é de ter escrito uma coluna para este jornal onde se lê: "Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal."
Discordo de Schwartsman, no mérito do seu argumento. Escrevi, neste mesmo jornal, que torcer para que Bolsonaro morra é nos igualar a ele. Isso porque desprezar o valor da vida é o que o presidente faz todos os dias. Processar jornalistas por fazer o mesmo que o presidente faz diariamente é, no mínimo, sarcástico e contraproducente, e, no mais, tão autoritário quanto é o próprio mandatário. No descaso com a pandemia, na defesa do armamento, na excludente de ilicitude policial, Bolsonaro inaugurou o governo da morte.
Quando critiquei o artigo de Hélio, aliás, havia 65 mil mortes no país por covid-19. Estamos 50 mil mortes à frente desta marca, e o que parece ofender o presidente não são estas mortes —reais, não hipotéticas— mas uma coluna de jornal que aplica um malogrado exercício filosófico.
O fato de o Ministro da Justiça ter o poder legal de requisitar a abertura de investigação em caso de crime de honra contra o presidente, por força do Código Penal (Art. 145), não o exime do fato de que este poder esteja sendo utilizado aqui de forma ilegal, porque está. Schwartsman está sendo investigado com base na Lei de Segurança Nacional da ditadura que pune "caluniar ou difamar o Presidente da República (...) imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação."
Escrever coluna no jornal, por mais equivocado que porventura seja o argumento ali defendido, não ofende o presidente ao ponto de constituir um fato típico que mereça atenção do direito penal. Presidentes são figuras públicas que podem ser, ao menos em democracias, criticadas ou até mesmo ridicularizadas. Investigações como essa impõem um efeito inibidor na liberdade de imprensa, ao servir como ameaça aos jornalistas que, por ofício, vigiam o poder político.
"A liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também as duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas". Estas são as palavras do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de 2019, ao rejeitar em 2019 o caso em que Bolsonaro moveu contra chargista que o associou ao nazismo.
"O dano à imagem somente seria aceitável se, ao revés, seu nome tivesse entrado em profundo declínio, o que, repita-se, não aconteceu. Ao contrário, o político em questão, ora Presidente da República do Brasil, foi alçado à categoria de 'Mito'", escreveu a desembargadora Cristina Tereza Gaulia. Vê-se, portanto, que defender a honra presidencial de mitos necropolíticos, como agora faz o ministro de Justiça, é uma tarefa inglória. No caso contra Hélio, é uma tarefa inglória e ilegal.
Não desejo a morte do presidente Bolsonaro, como também não desejava as 100 mil mortes para as quais sua inescrupulosidade contribuiu. Discordo de Schwartsman, mas torço para que se possa ter a liberdade de torcer para que um presidente —qualquer um— morra. Se considerarmos liberdade de expressão apenas a liberdade de dizer o que se quer ouvir, não há liberdade alguma.
Embora os limites da liberdade de expressão estejam hoje turvos tanto nos corredores da justiça quanto nos palácios em Brasília, ao impormos limites ao conteúdo da liberdade de expressão para além do ódio e incitação direta à violência passamos a navegar águas nebulosas. Democracia, ao exigir uma imprensa livre, não navega águas turvas; autoritarismo sim.
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