sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Angela Alonso Retórica moralizadora do bolsonarismo se firma em areia movediça, FSP

 

O presidente, o país está careca de saber, é um macho man. Nesta semana, riso maroto e brilho nos olhos, reiterou seu ideal de masculinidade: o combo força física ("histórico de atleta"), virilidade reprodutiva (gerou a filha "sem aditivo") e brutalidade (dissociou-se de "bundão", na amostra de baixo calão da vez).

Esse apelo à hombridade compõe seu patrimônio moral. Vem em palavreado rebaixado, mas exprime princípios comuns a conservadores.

A sexualidade está no centro dessa linguagem política. Metáforas, xingamentos, exemplos remetem sistematicamente a esse campo.

Retórica que, como nas falas de Damares, domestica a sexualidade, reafirma a hierarquia de gênero e prescreve a circunscrição do sexo à família. Aí reinam os macho men, responsáveis por seus inferiores em gênero —o marido cuida da esposa— e geração —os pais zelam pelos filhos.

Essa tônica protetora comparece na retórica bolsonarista em redes, Parlamento e governo. Veem-se como paladinos dos bons costumes, salvadores dos inocentes ameaçados por pedofilia, aborto, kit gay.

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Essa comunidade moral de cidadãos de bem sente-se sob constante ameaça, já que nem toda a gente comparte seus valores. Daí o ardor por polícia violenta, pena de morte e porte de arma, suas estratégias de autodefesa. Assim ergue muro entre mundos inconciliáveis e em guerra, o dos bons e dos torpes. É uma retórica desumanizadora do diferente, um anti-humanismo.

A eleição de um membro desse círculo para a Presidência faz parecer tudo isso recente, mas essa política moral está aí faz tempo. O Revoltados Online originou-se de rede virtual de caçadores de pedófilos.

Movimentos contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo saíram às ruas, quando o STF garantiu o direito, em 2011. A Marcha Nacional da Cidadania pela Vida começou em 2007, com grupos como o cerceador do hospital que atendeu a criança estuprada pelo tio.

Bolsonaro, Damares, Flordelis são as expressões, na Presidência, no ministério, no Parlamento, dessa política moral cujo epicentro é a defesa de seu ideal de família.

O problema é que o modelo é mais horizonte imaginário que realidade tangível. A violência da pedofilia foi, no caso capixaba, como em outros, familiar. A família agrediu, quem protegeu foi o Estado —uma face do Estado moderno é justamente proteger os indivíduos de imposições morais, econômicas, políticas da família.

Política moral de promessas vãs, pois a conduta contradita a retórica. Veja-se a casa presidencial. O pai incentivou o 02 a se candidatar contra a mãe, em 2000. Veja-se a ministra da Família. Recaem sobre ela suspeitas quanto ao estatuto legal da adoção da filha. E veja-se Flordelis. A deputada, quinta mais votada no Rio, levou a contradição ao paroxismo. Pastora, mãe de 55 filhos, entre naturais e adotivos, hasteou a família como bandeira. Em 2017, chamou exposição de arte em Porto Alegre de "apologia à pedofilia".

Seguidas vezes condenou a interrupção legal da gravidez: "Aborto é assassinato".

Assassinato foi o que aconteceu na sua casa. Um crime em família. No enredo, lotado das perversões projetadas em inimigos, não faltou a justificativa religiosa: "Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus". A retórica moralizadora do bolsonarismo se firma em areia movediça. Mas é bem escorada em laços pessoais. Flordelis é "irmã em Deus" da primeira-dama —aliás, onde foram parar aqueles R$ 89 mil?— e acha o presidente "um ser humano incrível".

Tudo gente de bem.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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