“Reinício! Este é plano do projeto Qanon. A atual estrutura de controle e poder será destruída”.
Essa mensagem, que parece saída de um jogo de videogame, é na verdade de um e-book que acabou de ser lançado no Brasil, com o objetivo de atrair adeptos ao mais novo movimento da extrema direita a ser importado dos EUA.
O QAnon (pronuncia-se “quíanon”) surgiu em 2017, com todos os elementos de uma típica comunidade de amalucados discutindo teorias da conspiração. Tudo muito folclórico, até essa franja da direita americana começar a ganhar espaço nos debates políticos e a ocupar espaços eleitorais.
No início de agosto, pela primeira vez uma adepta do movimento conquistou o direito de se candidatar a uma cadeira na Câmara dos Deputados dos EUA. Marjorie Greene, do estado da Geórgia, tem grandes chances de ser eleita em novembro, concorrendo pelo Partido Republicano.
O próprio presidente Donald Trump foi perguntado por jornalistas na semana passada sobre o QAnon. Disse que tinha pouca informação sobre o movimento, mas se mostrou satisfeito com o fato de contar com a simpatia de seus membros.
Fica até difícil identificar uma ideologia propriamente dita no QAnon. É uma mistureba de teses bizarras que, grosso modo, denunciam uma certa “elite financeira mundial” por financiar de satanismo a pedofilia.
A salvação só virá após uma intensa mobilização conservadora que varrerá essa casta diabólica do mapa. Esse momento tem vários nomes: “Reset” (reinício), “Grande Tempestade”, ou “Grande Despertar”,
Politicamente, os adeptos desse movimento são fortes apoiadores de Trump e de outros líderes globais da direita populista. No Brasil, isso se traduz na defesa de Jair Bolsonaro. Também há uma forte presença de um discurso cristão ultraconservador, que não poupa nem o papa Francisco.
O QAnon se baseia fortemente em símbolos, a começar pelo nome do movimento. A letra “Q” se refere a uma suposta pessoa (alguns acreditam ser um grupo de pessoas) que teria uma posição importante na estrutura de governo americano e acesso a relatórios secretos do “Deep State”, o “Estado profundo”.
“Anon” é referência ao fato de que muitos dos seus seguidores imediatos são anônimos e decifram as denúncias postadas de forma cifrada por “Q”, que depois alimentam teorias conspiratórias.
A coisa toda surgiu pela primeira vez na plataforma 4Chan, um fórum virtual muito usado pela direita. Hoje, se espalhou por redes como Twitter, Telegram e YouTube.
No Brasil, o QAnon começou a adquirir alguma popularidade a partir do começo deste ano e ainda parece ser algo restrito. Não há parlamentares ou pessoas ligadas ao governo Bolsonaro que explicitamente assumam pertencer a ele, embora compartilhem algumas pautas, métodos e valores.
Tem sido cada vez mais comum, por exemplo, encontrar referências à ameaça representada por pedófilos em tuítes de expoentes do bolsonarismo.
Embora seja basicamente um movimento de redes sociais, referências isoladas à letra “Q” já apareceram em algumas manifestações de apoiadores do presidente em Brasília e São Paulo.
Os manda-chuvas da comunidade usam pseudônimos. O autor do e-book recém-lançado no Brasil, por exemplo, se apresenta como Witcher Frog (sapo feiticeiro).
O livro destinado ao público brasileiro, lançado em 17 de agosto, se chama “O Movimento QAnon – Introdução à História que Mudará o Mundo”. Tem 50 páginas e pode ser comprado na internet por R$ 5,90, no site de outro integrante da comunidade, chamado Paladin Rood.
“Fé, coragem e força movem o movimento Q. A última cruzada diante da perenidade de um mundo perdido e dominado pelas trevas. O movimento Q se tornou a nova religião do cristianismo e do conservadorismo unindo-os pelo sentimento e objetivo de vencer o mal e as injustiças”, diz um trecho do livro.
Na capa, há uma ilustração em que “Pepe The Frog”, personagem símbolo da direita radical americana, monta um cavalo enquanto o prédio do Congresso americano arde em chamas.
A lista de inimigos do movimento é grande. Como relata o livro, são “multibilionários globalistas, ditadores sanguinários, políticos corruptos, a grande mídia, bigtechs do Vale do Silício, os maiores bancos do mundo, a bigpharma [farmacêuticas], organizações criminosas, organizações terroristas, grandes narcotraficantes, organizações de tráfico humano, redes de pedofilia, militares traidores de alta patente, agência de inteligência nacionais e internacionais”.
Também sobra para a maçonaria, para os defensores das estratégias de isolamento social contra a pandemia e para a China. Bill e Hillary Clinton estão entre os alvos prediletos.
Segundo o livro, a Fundação Clinton “é uma das principais responsáveis pelo tráfico de crianças em todo o mundo”. Hillary é descrita como uma satanista cujo objetivo é destruir a família.
Mas há teorias para todos os gostos, desde as recicladas, como a de que o ex-presidente George Bush simulou os ataques de 11 de setembro de 2001, até novidades, como a de que John Kennedy Jr., filho do ex-presidente JFK, não morreu num acidente aéreo em 1999 e vai ressurgir como um apoiador de Trump.
Um dos aspectos mais pitorescos é o uso de símbolos, mapas e números que seriam indicados por “Q” e decodificados por seus seguidores mundo afora. No Brasil, um dos principais “tradutores” é o perfil Dom Esdras (outro pseudônimo), que tem 73 mil seguidores no Twitter.
Um dos raros adeptos do QAnon brasileiro que não usa pseudônimo é o professor aposentado Stuart Linhares, 55, morador de Florianópolis (SC).
Apoiador de Bolsonaro, ele disse, por telefone, que começou a ter contato com o movimento no começo do ano, buscando na internet.
“Fui pesquisando sites e vídeos, vi assuntos de cair o queixo, como uma rede de pedofilia internacional da elite financeira mundial. Comentei com outro amigo meu, que me mandou um link no Twitter, me deu uns negócios para eu seguir, pesquisar. E comecei a acessar um, outro e cheguei no QAnon”, afirmou.
Para Linhares, seria exagero dizer que o QAnon no Brasil é um movimento. “Movimento é uma coisa organizada, que traça estratégias. Por enquanto são pessoas que estão se informando, trocando ideias”, diz ele, que estima ter cerca de 80 pessoas com as quais interage.
O contato com outros membros dessa comunidade, afirma ele, se dá puramente por meio de redes sociais. Ele contribuiu com R$ 40 para uma vaquinha online que viabilizou a publicação do e-book, mas diz desconhecer a identidade real do autor.
De acordo com Linhares, as informações relatadas pelo QAnon são em geral embasadas em fontes confiáveis. “Não tem sensacionalismo. Tem coisa que não é verdade, que é fruto de entusiasmo de alguns. Mas algumas coisas têm fundo de verdade, sim, e merecem ser investigadas, apuradas”, afirma.
“Travamos uma luta contra uma elite que manda e não aparece. Antigamente eles passavam incólumes”, diz Linhares. “Nos EUA, o QAnon são pessoas de alto nível, altamente instruídas, que mostram o que está acontecendo por baixo dos panos. São militares de alta patente, políticos, patriotas, que querem defender o país”.
No repertório do movimento, a pedofilia tem lugar especial. É como se fosse a mãe de todas as teses conspiratórias, diz o professor Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita.
“É um tema que tem grande apelo na sociedade, e não apenas para os setores conservadores. E é também muito forte para deslegitimar inimigos políticos”, afirma Caldeira Neto.
Embora sem usar o rótulo QAnon, traços dessa estratégia de mobilização vêm sendo usadas por diversos bolsonaristas, como se viu recentemente na campanha de difamação contra o youtuber Felipe Neto. Também foram alvos o MBL (Movimento Brasil Livre) e ministros de cortes superioras.
Segundo Caldeira Neto, o QAnon é mais um exemplo da tentativa da direita brasileira de emular novos produtos que surgem nos EUA. Um exemplo anterior foi a estética “vaporwave”, que combina referências estéticas dos anos 80 e 90 a uma linguagem de videogame.
“É novamente o rito de tentar reproduzir as expressões da direita radical americana no Brasil. Não dá para dizer ainda o que essa vai virar, mas mostra uma capacidade de interlocução com setores cristãos, na pauta de costumes”, afirma.
Nos EUA, diz Caldeira Neto, o QAnon já está um passo à frente e diversificou a pauta da pedofilia para outros temas, como a ameaça da China, a “farsa” do coronavírus ou os interesses por trás da implantação da tecnologia 5G.
“Tudo isso entra como uma denúncia do suposto Deep State [Estado profundo], que teria vários braços, seria um polvo com vários tentáculos”, afirma.
A força mobilizadora do QAnon já se manifesta na campanha americana em prol de Trump, com ataques frequentes a supostas relações do Partido Democrata com pedófilos. No Brasil, é improvável que essa comunidade tenha peso decisivo –ao menos por enquanto.
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