terça-feira, 9 de setembro de 2025

Coisas que acontecem num certo país infeliz. Por Pedro Cafardo, Valor (original)

 O debate econômico se dá basicamente em torno de problemas fiscais, que podem ter impacto nos próximos anos, mas não afetam hoje o humor e o dia a dia das pessoas

No Prerrô

Num certo país infeliz, espalha-se um enorme pessimismo sobre a economia e, aparentemente, resultados bastante positivos para a vida real de pobres e ricos são quase ignorados nas análises.

Nesse país infeliz, argumenta-se que a inflação está incontrolável, mas ela atingiu em média 4,73% ao ano nos dois últimos anos. Nos quatro anos anteriores, havia alcançado 6,17% ao ano. E a inflação média atual está abaixo da média dos últimos trinta anos (6,5% ao ano), desde que foi criada a atual moeda em circulação.

Nesse país, propala-se que o descontentamento advém das classes mais pobres, que estariam sendo fulminadas por uma inusual inflação dos produtos alimentícios. Mas os alimentos subiram 8% no ano passado, menos que a renda das famílias em geral, que cresceu 10%, e muito menos que a renda das famílias mais pobres, que aumentou 19%.

Nesse país mal-humorado, a taxa de desemprego vem recuando e estava em 6,6% da força de trabalho no primeiro trimestre, em nível próximo do mais baixo da série histórica para o período. A previsão atual é de que caia para 5,9% até dezembro. A informalidade no trabalho recuou para 37,9%, taxa situada entre as menores da série histórica iniciada em 2015.

A desigualdade de renda nesse país infeliz, medida pelo Índice de Gini, foi a mais baixa da história no ano passado. E a renda per capita domiciliar mensal, a maior desde o início da série histórica, em 2012.

Nesse país, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre Estado de Insegurança Alimentar no Mundo, o número de pessoas em situação de fome diminuiu de 17,2 milhões em 2022 para 2,5 milhões em 2023. Portanto, cerca de 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome de um ano para outro nesse país infeliz.

O PIB desse país surpreendeu novamente os pessimistas e cresceu 1,4% no primeiro trimestre, índice superior ao dos países da OCDE e do G7 – ambos os grupos avançaram minguado 0,1%. O crescimento se dá a despeito da imposição de uma assombrosa taxa básica de juros, de 14,75% ao ano, nove pontos percentuais acima da inflação, que desincentiva investimentos.

Essas surpresas do PIB ocorrem desde 2020 nesse país infeliz, quando se projetava recessão de 6,5% e ela foi de 3,3%. Em 2021, a expansão prevista era de 3,4% e a efetivada foi 4,8%. Em 2022, estimava-se 0,3% e deu 3%. Em 2023, o esperado era 1,4% e deu 2,9%. Em 2024, previa-se 1,6% e deu 3,4%.

Nesse país, observa-se que os empresários estariam insatisfeitos, mas os lucros das empresas no primeiro trimestre foram excepcionais e superaram as expectativas do mercado. O lucro líquido das 387 companhias abertas não financeiras subiu 30,3% no trimestre, para R$ 57 bilhões, e as receitas cresceram 13,9%, para R$ 976,7 bilhões.

Na área financeira, os lucros dos quatro maiores bancos no primeiro trimestre cresceram em média 7,3% e somaram R$ 28,2 bilhões. Um bancão aumentou seu resultado em 39% na comparação com o mesmo período do ano passado.

Nesse país pessimista, atingido há décadas pelo vírus da desindustrialização, a indústria voltou a crescer: 3,1% no ano passado. Em março, avançou 1,2% sobre fevereiro e 3,1% sobre março de 2024.

Por que, afinal, a bruma pessimista continua a embaçar toda a economia desse país infeliz? Se prevalecesse a “lei Carville” (É a economia, estúpido!), cunhada na campanha presidencial de Bill Clinton, em 1992, essa neblina não faria sentido.

Resumindo: nesse país infeliz, a inflação está abaixo da média nacional dos últimos 30 anos; a renda dos mais pobres cresce mais que a inflação de alimentos, principal item de consumo nessa faixa de rendimento; o nível de desemprego é o mais baixo da história; o número de pessoas em situação de fome caiu 85% em um ano; a desigualdade de renda é a mais baixa da história, e a renda per capita, a mais alta; o crescimento da produção surpreende positivamente há cinco anos; a safra de alimentos bate recorde; o lucro das empresas financeiras e não financeiras aumenta muito mais que a inflação; a bolsa de valores quebra recordes e rentistas/investidores das classes média e alta ampliam seus patrimônios com os juros de dois dígitos.

Nesse país infeliz, um partido de oposição pôs no ar uma peça publicitária engraçadinha dizendo ter saudade de um ex-presidente porque está tudo “caro”, fazendo rima com o nome do ex. Mas, nos quatro anos desse governo “saudoso”, a inflação média anual foi de 6,17%, índice bem maior que o dos dois primeiros anos do governo atual desse país (4,73%). Os alimentos estariam subindo mais, argumenta-se. Falso. Nos quatro anos “saudosos”, os alimentos subiram em média 8,24% ao ano. Nos dois do atual mandato, 4,36% ao ano.

A peça publicitária foi contestada? Que se saiba, não. O debate econômico se dá basicamente em torno de problemas fiscais, que podem ter impacto nos próximos anos, mas não afetam hoje o humor e o dia a dia das pessoas. Ou esse país infeliz tem graves falhas na comunicação ou talvez sua infelicidade e seu pessimismo não venham da economia, estúpido.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Emerson Moreira.

Ilustração: Mihai Cauli / Terapia Política

 

Alvaro Costa e Silva - Reviver Centro é velha especulação imobiliária com disfarce, FSP

 Como em outros projetos de "revitalização", a perspectiva mercadológica domina o Reviver Centro, cujo objetivo é —ou era— incentivar o uso habitacional na região central do Rio com a reconversão de edifícios, ampliando a oferta para populações de diferentes faixas de renda.

Lançado em 2021, o projeto beneficia investidores e o mercado imobiliário, sem remediar o estado de emergência do Centro, afetado pelos efeitos da pandemia e, antes, pela incúria dos governantes. Um local histórico abandonado por décadas.

O lançamento de um residencial na rua do Acre, na semana passada, teve de ser cancelado porque todos os 153 estúdios, com preços a partir de R$ 289 mil, haviam sido vendidos na véspera, em 24 horas. Mesmo que atendesse às necessidades —o que não era o caso, devido ao tamanho estilo ovo das unidades, com paredes tendo a consistência de cascas—, uma família de quatro pessoas, morando na zona norte ou oeste, não teria tempo nem de pensar em fazer o negócio.

Gigante adormecido, o prédio de 31 andares da Caixa Econômica na avenida Rio Branco será repaginado. Para atrair os compradores, a promessa é que alguns poucos apartamentos serão maiores, com três quartos, prevendo-se a instalação de um supermercado no térreo, alguma coisa que lembre um bairro e não o enclave de uma cidade-evento, com quitinetes para aluguel por temporada.

Ali perto, a prefeitura resolveu inovar. Não há edifício a ser adaptado e sim uma praça condenada a desaparecer, dando lugar a um monstrengo com 24 andares e 720 mínimos apartamentos. É a maior investida até agora do Reviver Centro. Ou Enterrar Centro, como preferirem.

Embora feio e mal aproveitado, o Buraco do Lume é um dos poucos lugares de respiro na região. Sua história liga-se ao conceito de urbanicídio que move o Rio. Nasceu da derrubada de parte do casario no lado ímpar da rua São José, em 1972, para que se erguesse a sede da Lume Empresarial, que faliu, deixando o buraco. Desenha-se agora um bloco de concreto sem lume, cobrindo o céu.

Moraes deve dar orgulho aos refundadores da democracia brasileira, Celso Rocha de Barros, FSP

 Nesta terça-feira, 9 de setembro de 2025, o ministro Alexandre de Moraes deve apresentar seu voto no julgamento dos golpistas de Jair Bolsonaro. É um momento histórico da democracia brasileira, e o ponto culminante da biografia de um dos mais importantes ministros da história do Supremo Tribunal Federal.

Escrevi "importante" e fiz questão de não acrescentar "controverso", como se costuma fazer quando o assunto é Xandão. O adjetivo caberia se entre os argumentos dos críticos e dos defensores de Moraes houvesse lastros factuais de ordens de grandeza ao menos similares.

Um homem careca, com expressão séria, está sentado em uma cadeira vermelha. Ele usa um terno escuro com uma gravata azul e uma toga preta. Ao fundo, é possível ver algumas pessoas desfocadas, mas não é possível identificar detalhes.
O ministro Alexandre de Moraes, durante o julgamento na Primeira Turma do STF - Gabriela Biló-3.set.25/Folhapress

Não há: descontados os que criticam Moraes porque apoiam os crimes que ele julga, descontados também os que esperam ganhar dinheiro ou subir na carreira dando-lhes crédito, as críticas legítimas a Alexandre de Moraes são só as que se poderia esperar em um julgamento desse tamanho, realizado em circunstâncias tão ruins.

Se, pelo tamanho do crime, esse é o maior julgamento da história do STF, é também um dos mais triviais: as provas contra os acusados são avassaladoras. Moraes não se consagrou por desvendar sutilezas jurídicas, mas por não ignorar fatos cristalinos por medo de kid preto ou vontade de visitar a Disney.

Faço questão, inclusive, de sair em defesa dos advogados dos acusados: sim, seus argumentos na semana passada foram frágeis e, muitas vezes, constrangedores. Mas não tenho dúvida de que, se houvesse bons argumentos pela absolvição, as defesas teriam sido capazes de citá-los. Se um único fato houvesse que fosse favorável aos acusados, as defesas teriam sido capazes de trazê-lo à luz.

Como bem reconheceu a revista britânica The Economist, a atuação de Moraes foi conforme à lei brasileira, que dá grandes poderes para a Suprema Corte. Na fórmula criada pelos cientistas políticos Carlos Pereira e Marcus Mello, os constituintes de 88 criaram uma "coleira forte para cachorro grande" quando colocaram o STF para fiscalizar a Presidência da República.

Mas é óbvio que o protagonismo do STF no combate ao golpismo mostrou como nossas outras instituições fracassaram em suas respectivas tarefas. Muito do que o STF fez deveria ter sido feito pela Procuradoria-Geral da República, que, no entanto, era ocupada por Augusto Aras, sempre dócil diante de Jair. Muito do que o STF fez deveria ter sido feito pelo Congresso Nacional, mas Bolsonaro comprou os parlamentares com o fim da Lava Jato e a criação do orçamento secreto.

Compare a atuação do STF e dos congressistas brasileiros na semana passada. É para esse Congresso, em que os ladrões se aliaram aos golpistas para tornar impossível prender políticos, que o STF deveria ter delegado o combate ao golpe? Quem no centrão aguentaria, já não digo nem uma sanção Magnitsky, mas um tuíte mal-educado de Trump que fosse?

No combate ao golpismo, o STF não teve excesso de protagonismo. As outras instituições brasileiras, mais facilmente capturáveis por ladroagens e direitismos variados, é que se omitiram.

De qualquer maneira, mesmo que depois o Congresso nos envergonhe, Moraes nesta terça deve dar orgulho aos refundadores da democracia brasileira que fizeram a Constituição de 1988. A maioria da primeira turma do STF deve fazer o mesmo até sexta-feira. Nos últimos tempos, tivemos semanas da pátria bem piores.