sábado, 18 de janeiro de 2025

Antonio Prata Contabilidade nazi-criativa, FSP

 O grande mal que nos assola não é a polarização, não é o identitarismo nem "é a economia, estúpido!". É a estupidez, estúpido. É a burrice, desgraça que grassa por todos os lados no ano da graça de 2025.

Vejam só: um vilão da novela das nove diz para seu contador fazer uma "contabilidade criativa" e esconder a corrupção na empresa. O Conselho Regional de Contabilidade do Estado de São Paulo (CRCSP) publica uma nota de repúdio ao folhetim. "Sugerir, em um produto de entretenimento, que contadores participem de práticas ilícitas ou antiéticas contribui para a disseminação de estigmas equivocados, subestimando a importância da contabilidade na construção de uma sociedade mais justa e responsável."

A imagem apresenta uma figura que combina um bloco de construção com um casaco. A parte superior é formada por um bloco de tijolo, enquanto a parte inferior é um casaco de cor clara, com mangas e punhos visíveis. O fundo é de uma cor clara e uniforme.
Adams Carvalho/Folhapress

Tenho certeza de que o autor de "Mania de Você", João Emanuel Carneiro, não subestima "a importância da contabilidade na construção de uma sociedade mais justa e responsável". Até porque, imagino, diante da uberização dos profissionais do audiovisual, ele seja PJ e dependa dos profissionais da área. Acontece que as novelas têm vilões e esse tipo de personagem caracteriza-se por, veja bem, fazer vilanias. Se for um médico, vai fazer maldade na medicina. Se for um taxidermista, vai fazer maldades na taxidermia – embora eu não consiga imaginar, de imediato, que sacanagem alguém possa fazer ao empalhar um guaxinim.

A literalidade é das formas mais irritantes de burrice, e, dentro da literalidade, a incapacidade de discernir entre a ficção e a realidade é das suas manifestações mais danosas. Eu disse que não eram a polarização nem o identitarismo as maiores pragas atuais, mas eles colaboram com a dificuldade contemporânea em compreender que quando, num livro, filme, novela ou série, um personagem gordo, magro, preto, albino ou ruivo dá um peteleco no lóbulo de outro, a obra não está afirmando que toda pessoa gorda, magra, preta, albina ou ruiva dê petelecos nos lóbulos dos outros.

Dois anos atrás, assisti no Mirada, festival ibero-americano de teatro, do Sesc, a uma excelente peça chilena. Eram quatro artistas brancos que pensavam numa forma de emplacar a próxima exposição num mundo em que ser branco, no mundo das artes, não é mais necessariamente uma vantagem. Era uma comédia e esses quatro brancos imaginavam formas mais "cool" de se venderem. Fingiriam ser pobres? Invocariam uma mentirosa ancestralidade indígena? Em determinado momento, um dos personagens coloca uma peruca "blackpower" e sugere tentarem se passar por pretos. A piada era em cima dos brancos tentando dar um golpe e embarcar nas pautas identitárias. Ria-se do patético de um pessoal que perdeu parte de seus privilégios, após alguns milênios de opressão às minorias, agora tentar se passar pelas minorias.

Quando acabou a peça teve uma discussão e boa parte da plateia estava revoltada com a peruca "blackpower". Disseram que era como "blackface". Era, exatamente, confirmaram os atores, mas, no caso, para criticar o "blackface". Não teve jeito. Branco tentar se passar por preto era "errado". Exato, os atores insistiram. A peça é exatamente sobre isso. Sobre o erro daqueles brancos. Impossível, os argumentos racionais batiam numa muralha da China de burrice. (Não há aqui nenhuma crítica à China ou aos chineses, sim à muralha, ok?).

Vai chegar o dia em que proibirão "A Lista de Schindler" porque nele todos os nazistas são antissemitas. Embora, talvez, os contadores cancelem o filme antes, pois Schindler era contador. E nazista. Obviamente, uma ideia preconceituosa que tenta vender o nobre ofício da contabilidade como um antro de supremacistas brancos. Por favor, parem o mundo que eu quero descer.


Nova classe trabalhadora não está satisfeita com governo Lula. É um fenômeno de classe, diz cientista político André Singer, BBC NEWS FSP

 

Marina Rossi
SÃO PAULO | BBC NEWS BRASIL

O alinhamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com uma parcela importante da camada mais pobre da população continua fiel, passados mais de 20 anos de seu primeiro governo. São pessoas com renda familiar mensal de até dois salários mínimos e reúnem a maioria dos brasileiros que apoia o governo petista.

Quem cita o panorama é André Singer, professor titular do Departamento de Ciência Política da USP, para afirmar que "ainda está de pé" o "lulismo", o termo cunhado por ele para descrever essa conexão entre Lula e base da sociedade, para além do próprio Partido dos Trabalhadores (PT).

Um homem sorridente está sentado em uma cadeira em frente a uma mesa, com uma estante cheia de livros ao fundo. Ele usa uma camisa de gola clara e jeans. A mesa tem alguns livros e um computador. O ambiente é bem iluminado, com uma atmosfera acolhedora.
O cientista político André Singer em seu escritório - Fernando Cavalcanti/BBC

No entanto, à medida que a renda sobe, o governo Lula começa a encontrar dificuldades. São obstáculos atribuídos por Singer às transformações mais recentes do capitalismo e estão ligados nos últimos anos ao aumento do custo de vida e às mudanças no mercado de trabalho, e não apenas no Brasil.

Em entrevista à BBC News Brasil, Singer, que foi porta-voz do primeiro governo Lula (2003-2007), analisa esse momento atual e aponta alguns dos principais desafios para o PT, que sua família ajudou a fundar.

"O PT é herdeiro da tradição da classe trabalhadora organizada. E ele tem dificuldades diante de uma classe trabalhadora profundamente desorganizada, eu diria até estruturalmente desorganizada", diz ele, autor de "Os Sentidos do Lulismo" (2012) e "O Lulismo em Crise" (2018).

Poucos dias após esta entrevista concedida em São Paulo, a chamada crise do Pix se instaurou, pressionando o Planalto.

Em meio a fake news e boatos de que o Pix seria taxado ou que o monitoramento levaria a uma maior tributação, o governo precisou recuar da medida tomada, que aumentava a fiscalização das transações.

Algo acrescentar sobre o tema?, perguntou a reportagem a Singer logo depois. Ele disse que ainda era cedo para uma posição mais substantiva sobre a crise, mas frisou: "A polêmica mostra como o tema do trabalho informal por parte de pequenos empreendedores ganhou relevância no Brasil de hoje.".

Na conversa, além dos destinos de Lula e seu partido, Singer também falou das perspectivas da direita e da direita radical para 2026.

Somente cerca de um terço dos brasileiros aprova o governo Lula, segundo o Datafolha, e ele não consegue subir esse percentual, apesar de indicadores econômicos, como o baixo desemprego. Por quê?
Se olharmos os resultados de apoio ao governo por renda, a gente observa que, entre os que ganham até dois salários mínimos de renda familiar mensal, que é a base da pirâmide social, o apoio [ao governo] vai para 46%. Portanto, poderíamos dizer que se a sociedade brasileira fosse só composta desse setor, que é quase a metade da população, as condições de governo estariam bem melhores. Porque a partir de 50% [de aprovação] você começa a considerar que um governo está indo para as condições de reeleição, e 46% está bastante perto de 50%. Portanto, eu diria que isso mostra que o realinhamento eleitoral de 2006, que diz respeito ao lulismo, está funcionando.

Houve um realinhamento por meio do qual a base da sociedade brasileira colocou o Lula como seu representante. E o Lula, por sua vez, se tornou o representante desse setor. É isso que eu chamo de lulismo. Isso está de pé.

Porém, daí para a frente, ele cai abruptamente pra cerca de 27% [de aprovação]. Perde 20 pontos percentuais quando você passa dos eleitores que ganham até dois salários mínimos de renda familiar mensal, para os que ganham de dois a cinco salários mínimos. Isso é impressionante.

E o que acontece, a meu ver, é um fenômeno de classe. Você está transitando do subproletariado para o proletariado. Esse setor que está mais integrado, que é, vamos dizer, o proletariado, não está satisfeito.

Por quê?
Acho que um dos elementos da insatisfação tem a ver com o custo de vida, que esteve significativamente alto o tempo todo, e não baixa. Agora, com o que aconteceu nos Estados Unidos, ou seja, a derrota do Biden, dá para ver que esse é um fenômeno mundial. Tem um problema mundial de aumento do custo de vida, que está pegando, provavelmente, as cadeias produtivas desde a Covid, que foram desorganizadas e, possivelmente, essa desorganização foi potencializada pela guerra na Ucrânia, que aumentou o preço dos combustíveis.

Tem uma onda, não só inflacionária, mas especificamente do aumento do custo de vida para as pessoas de baixa renda.

O outro fator tem a ver com a mudança do mercado de trabalho no Brasil. Depois do impeachment da presidente Dilma, tivemos a reforma trabalhista com perda acentuada de direitos e praticamente dez anos de intensa transformação tecnológica, em que o trabalho por plataformas entrou com uma força que não existia até então. E com isso você tem uma fragmentação da antiga classe trabalhadora que ganha agora uma forma nova. Você tem levas de trabalhadores, em boa parte jovens, mas não só, que não têm a experiência do trabalho em fábrica, do trabalho sindicalizado ou sindicalizável. Você tem essa nova modalidade que se usa chamar de empreendedorismo, mas que na prática é uma inserção precária no mercado do trabalho, marcada pela superexploração.

O problema é que isso tem um efeito perverso. As pessoas que não passaram pela experiência anterior acham que o mundo é assim e que, portanto, é preciso se virar por conta própria. Essas pessoas se tornam razoavelmente vulneráveis a uma ideologia de extrema direita que vai na direção de eliminação do Estado.

Daí para frente, você tem um terceiro fenômeno, que é a oposição ao governo. Sempre existiu, e se não houver oposição, não tem democracia. E [neste caso] é a oposição da classe média, que não enxerga nesse governo o seu governo. Historicamente, era assim quando o PSDB era forte, mas vai se radicalizando até chegar ao ponto de eleger o [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Essa base, que era uma base do PSDB, se deslocou para a extrema direita. E, em parte, ainda está lá.

A imagem mostra um protesto em Brasília, com várias pessoas vestindo camisetas amarelas e algumas em camisetas verdes. Há fumaça no ar, possivelmente de bombas de gás lacrimogêneo, e as pessoas parecem estar se dispersando ou correndo. Ao fundo, um grupo de manifestantes está subindo as escadas de um edifício.
Manifestantes em frente ao Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023 - Reuters

Não é um paradoxo o Partido dos Trabalhadores não conseguir dialogar com essa classe trabalhadora que está crescendo cada vez mais?
Eu não acho que seja um paradoxo. Eu preferiria chamar de um efeito perverso, da maneira pela qual o capitalismo está se desenvolvendo no mundo. Essas coisas nunca são deliberadas, porque não existe uma pessoa orientando o capitalismo. O que existe é o resultado, como diria [Karl] Marx, do desenvolvimento das forças produtivas.

O capitalismo contemporâneo está dissolvendo a antiga classe trabalhadora, à medida que vai havendo a desindustrialização. O PT é um partido herdeiro da tradição da classe trabalhadora organizada. E ele tem dificuldades diante de uma classe trabalhadora profundamente desorganizada, eu diria até estruturalmente desorganizada. Porque é isso que o capitalismo contemporâneo está fazendo.

Em uma perspectiva de futuro longínqua, é possível imaginar que ela vai acabar se organizando, mas vai demorar muito tempo. Porque as condições são totalmente adversas. Vamos imaginar o tempo em que o Marx escreveu. Não é o sindicato que organiza os trabalhadores. O sindicato serve de veículo para uma organização que já existe. É o próprio capitalismo que organiza o trabalhador na fábrica. É por isso que o Marx diz que o capitalismo produz os seus coveiros.

Só que agora não tem mais isso. O sujeito que trabalha por plataforma compete com o colega. Primeiro que ele não sabe quem são os competidores, eles não se encontram, eles não dividem o trabalho, cada um faz o seu. Não há uma linha de produção dividida, não há como fazer automaticamente uma greve.

Nesse sentido, existe uma crítica de que o PT não abraçou necessariamente a pauta do fim da escala 6 por 1, um tema caro aos trabalhadores.
De fato, é uma questão sobre a qual o partido devia se aplicar mais, porque eu acho que ele justamente fala para esse setor, de dois a cinco salários mínimos de renda familiar mensal. Da mesma maneira como me parece que a proposta de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais de renda familiar mensal, fala para esse setor também.

O PT não pode aderir a uma ideologia do empreendedorismo do salve-se quem puder. Isso é contra os seus próprios princípios. É contra aquilo que ele veio para propor para a sociedade brasileira.

Mas isso está na mesa?
Eu noto que há uma certa perplexidade, em particular com o que aconteceu em São Paulo, onde isso foi muito nítido, o apelo do Pablo Marçal [o ex-coach que foi candidato à Prefeitura de São Paulo em 2024 pelo PRTB] em relação, por exemplo, aos moto-entregadores. E dentro dessa perplexidade, por vezes eu vejo inclinações a querer adotar certas propostas, ideias que não fazem sentido para um partido de esquerda. Como se fosse possível simplesmente trazer essas propostas. Há um limite que é dado pela própria razão de ser do partido.

A ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda e da contribuição para quem tem renda superior a R$ 50 mil por mês foram, ao seu ver, medidas bem comunicadas? Acha que as pessoas estão sabendo?
É... Acho que as pessoas não estão... Talvez não estejam sabendo. Mas eu não sei se o problema aí é de comunicação. O projeto de lei não foi ainda enviado ao Congresso. E estamos diante de um Congresso em que a maioria conservadora é nítida. Portanto, uma medida como essa não vai ter vida fácil. O eleitorado, de modo geral, não está muito interessado no processo, mas sim no resultado.

A direita radical se comunica muito bem. Bolsonaro fazia lives toda semana para falar com seus eleitores e dizer o que estava fazendo, e usa bem as redes sociais...
Acho que há uma confusão nessa formulação. Não é que o Bolsonaro se comunica bem. É que a internet é muito favorável, como o rádio foi na época do fascismo histórico, para um tipo de comunicação muito direta e muito altissonante. Porque isso chama muito a atenção.

Vou dar o exemplo de novo do Trump, que por ser distante é mais fácil. Ele fala coisas absurdas. E uma parte das coisas que ele fala tem só a função de chamar atenção. Porque chamar atenção é o próprio objetivo.

BBC News Brasil - O Bolsonaro fazia o mesmo...

Singer - Acontece que a esquerda não pode fazer isso. É contra, digamos, a missão da esquerda. A esquerda quer um passo além do capitalismo e da civilização capitalista. Se você começa a comunicar coisas absurdas, você está jogando tudo para trás, o que a extrema direita faz. É regressivo. Se a esquerda adotar esse tipo de conduta, ela se nega enquanto esquerda. Ela não pode fazer isso. É uma questão de para quê ela existe. Aí o problema não é de comunicação.

A extrema direita encontrou um espaço neste mundo porque o capitalismo fez as condições regredirem a um tal ponto que propostas absurdas têm um lugar. Porque, de certa forma, o capitalismo contemporâneo transformou a realidade em uma situação absurda. Então, propostas absurdas têm lugar, mas se a esquerda cede a isso, ela deixa de existir enquanto esquerda.

Falando em Pablo Marçal, os chamados outsiders da política estão ventilando uma possível candidatura em 2026 novamente, incluindo o candidato à Prefeitura de São Pauloe até o cantor sertanejo Gusttavo Lima (ainda sem partido). Na visão do senhor, o PT tem se preparado para esse tipo de embate?
A candidatura do Pablo Marçal em São Paulo mostrou duas coisas: a primeira é que a extrema direita tem apelo eleitoral. Ainda que São Paulo não seja o Brasil, em alguma medida as eleições em São Paulo são algo nacionalizadas e, feitas uma série de mediações, expressam um pouco o que acontece no Brasil.

Dado esse contexto, eu diria que a candidatura do Marçal mostrou a vitalidade da extrema direita, porque ele praticamente chegou ao segundo turno sem apoio partidário nenhum, tempo no horário eleitoral gratuito zero, só com base numa presença anterior na internet e numa articulação cênica, digamos assim, de altíssima competência. Não é tanto, digamos, a habilidade pessoal dele, e sim, a meu ver, a expressão de um espaço político que existe.

Ao mesmo tempo, a eleição mostrou que, isoladamente, a extrema direita não está em condição de vencer hoje. É claro que daqui a dois anos as coisas podem mudar, não estou fazendo uma previsão. Mas não só o Pablo Marçal acabou não indo para o segundo turno: em várias capitais em que fenômenos do tipo Marçal, só que aí no caso, apoiados pelo Bolsonaro, como foi Goiânia [com Fred Rodrigues, do PL], Fortaleza [com o deputado federal André Fernandes, PL] Curitiba [com Cristina Graeml, do PMB] e Belo Horizonte [com o deputado estadual Bruno Engler, do PL], em todos esses casos você teve fenômenos tipo Marçal, que chegaram ao segundo turno, praticamente empatando com políticos com grande apoio de máquinas. Mas todos perderam. Ou seja, a extrema direita tem chance, desde que ela se una à direita.

Essa minha conclusão está respaldada pelas declarações que foram dadas logo após a eleição por duas lideranças do campo da direita, que foram o Gilberto Kassab (PSD) e o Valdemar Costa Neto (PL), posicionados, neste momento, em campos distintos, porque o Kassab está no campo da direita e o Valdemar Costa Neto está no campo da extrema direita. Os dois viram que, sozinha, a direita não ganha e a extrema direita também não. Há então um problema aí de unidade. Eu diria que, diante disso, especificamente, o PT não tem muito o que fazer, porque é um problema do outro campo.

O que você poderia dizer é em que medida o PT está lidando com o problema da extrema direita, que é o caso do Marçal. Eu diria que a saída para isso já foi dada em 2022 e, se a situação se mostrar parecida, eu acho que ela vai ser colocada novamente como saída: uma grande frente de todos os que quiserem salvar a democracia. Isso já foi feito em 2022 e não me parece que haja nenhuma dúvida dentro do PT que, se houver a mesma situação, isso vai voltar a se colocar.

Marçal veio de um partido pequeno, sem tempo na TV, repetindo o que já havíamos visto em 2018 com a candidatura de Bolsonaro, que não se aliou a ninguém e mesmo assim venceu...
Em 2018, o que aconteceu foi que a extrema direita arrastou a direita. O eleitorado de direita foi arrastado para o voto no Bolsonaro. Isso foi uma onda, que se configurou enquanto onda quando ele sofreu o atentado. Até então, as chances do [Geraldo] Alckmin [então candidato à presidência pelo PSDB] eram razoáveis. Bolsonaro estava em uma ligeira queda e o Alckmin numa ligeira ascensão.

Eu não estou atribuindo tudo ao atentado, mas é que essas circunstâncias, por vezes, potencializam tendências. Não foi o que se viu em 2022, quando houve a formação de um bloco político-social novo, em que o bolsonarismo se apresentou como uma alternativa, não foi uma onda.

Onda é quando uma parte do eleitorado é tomada por um impulso de campanha. Tanto é assim que, em 2018, muita gente que fez campanha na periferia relatava que as pessoas diziam: "Eu sei que o Bolsonaro tem esses problemas, mas se ele der errado, a gente tira." Isso é uma forma de pensar que a pessoa está tomada por um impulso momentâneo. Os estudos eleitorais captam isso.

Já em 2022 foi diferente, foi uma opção mais organizada pelo Bolsonaro, que quase empatou a eleição.

Estamos diante de um outro tipo de cenário, que é: sozinha, a extrema direita não vence. E queria acrescentar um elemento. O Bolsonaro está inelegível. E, estando inelegível, isso cria um grande problema para a extrema direita, porque ele é o candidato da extrema direita.

Bolsonaro é um homem que tem carisma, dialoga com os setores populares no Brasil. Isso não é pouca coisa. Eu diria que o único outro político que tem um diálogo com os setores populares intenso é o presidente Lula.

Agora, ao ser posto de lado, ele se transforma de uma vantagem em um problema. Primeiro porque ele não podendo ser candidato, cria um vácuo. E ele, por razões táticas dele, não quer e não vai deixar esse vácuo ser preenchido facilmente. Então ele está criando, e, a meu ver, vai continuar criando, problemas para que esse vácuo seja preenchido. Isso leva a extrema direita para uma situação difícil em 2026.

Lula apareceu pouco nas eleições municipais de 2022. Houve uma questão relacionada à saúde, mas é só isso? Ou pode ter sido uma opção política também?
Eu não sei qual foi a estratégia que ele desenhou especificamente em relação a alguns locais. Mas eu entendi que ele decidiu concentrar o esforço dele em São Paulo. A meu ver, o fez. Os resultados acabaram não sendo os esperados, porque ele não conseguiu transferir a base de [quem tem] até dois salários mínimos de renda familiar mensal para o [Guilherme] Boulos [candidato do PSOL na chapa com o PT], que acabou ficando mais com o Ricardo Nunes. Em outros locais, ele tomou uma decisão que é a seguinte: em locais em que havia disputa dentro da base do governo, ele preferiu ficar afastado. Por razões que, do ponto de vista do presidente, são compreensíveis.

É preciso fazer uma distinção. Os interesses do presidente e do PT não são idênticos. O PT tem interesses enquanto partido, que não são exatamente iguais aos interesses do presidente, porque o presidente está apoiado numa vastíssima coalizão. E ele está, a meu ver, olhando para 2026 com uma análise de que se ele não levar essa coalizão para 2026, ele pode ter dificuldade.

Mas existe uma certa resistência da ala mais à esquerda do PT de se aliar a partidos do centrão.
Você tem que distinguir duas coisas. Uma, é a frente democrática para derrotar uma opção autoritária. Eu acho que isso ninguém questionou dentro do PT. A outra coisa é, vamos dizer, uma frente mais orgânica que envolva uma mudança de posição do próprio partido.

Aqui eu acho importante recolocar as coisas numa perspectiva histórica. O PT é um partido que tem o socialismo no seu programa. Se o PT continua sendo efetivamente socialista, é uma discussão. Mas isso está no programa e na origem do PT, um partido de esquerda no seu programa. O que está em debate, e não é um debate significativo, é uma eventual mudança da identidade do PT.

Uma coisa é um partido de esquerda entender que é preciso fazer uma frente tática para derrotar um inimigo maior e comum. Isso faz parte da tradição histórica da esquerda. Por isso que eu digo que não vejo nenhuma dificuldade dentro do PT em relação a isso. O que há divergência é sobre a mudança da identidade do PT. O que eu chamaria aqui de uma aliança mais orgânica com o centro e até mesmo com o campo da direita. Tem partidos de direita, como, por exemplo, o Republicanos e o PP, que estão no governo.

O PT vai passar por eleições em julho para definir seu novo presidente. Até o momento, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara, está sendo ventilado como o favorito de Lula para assumir o posto de Gleisi Hoffmann. Isso pode mudar os rumos do partido em 2026?
Eu não gostaria de me referir a nomes nesse momento, mas acho que talvez possa haver uma alteração. Não é muito claro, porque acho que as candidaturas não foram ainda apresentadas com clareza. Mas eu percebo dentro do partido um debate por vezes subliminar que vai nessa direção, de em que medida o partido deveria fazer um deslocamento mais ao centro com vistas, digamos, a ter supostamente maior sucesso eleitoral.

Pode ser que essa sucessão partidária coincida com um debate que acabe tendo algum resultado maior. Mas não dá para afirmar isso antes de entender como essa competição vai realmente se estruturar.

A imagem mostra uma grande multidão vestida predominantemente de vermelho, reunida em um evento público. Algumas pessoas estão levantando as mãos, enquanto outras seguram uma bandeira ou cartaz. No centro, uma figura é erguida por membros da multidão, que parecem estar celebrando ou demonstrando apoio.
Lula no meio de apoiadores no dia em que foi solto, em novembro de 2019 - Amanda Perobelli - nov.2019/Reuters

E como o partido está formando sucessores? O PT tem debatido sucessão?
O problema da sucessão de um líder carismático é sempre muito difícil. É aquilo que o [Max] Weber chamava de rotinização do carisma. Na verdade, quando isso acontece, você tem uma transição completa, de certa forma.

O Lula é um líder carismático que é excepcional e confirma, aliás, a própria definição conceitual do que é carisma. Qualquer que seja o resultado, ele vai ser difícil nessa sucessão. E não seria de se esperar que houvesse imediatamente um outro líder carismático que pudesse substituir esse líder.

Quando Lula não for mais candidato, vai se formar um vácuo. E como ele vai ser preenchido, eu não sei. O PT, eu tenho a impressão que seria natural que ele tivesse, e imagino que já tenha, uma série de quadros, porque é um partido grande, enraizado regionalmente, tem vários governadores e governadoras, prefeitos e prefeitas com experiência política, capacidade administrativa, visão de mundo.

O problema, e eu diria que acontece sempre que você tem a situação de uma liderança carismática, é a sucessão dessa liderança carismática. Sempre é, de certa forma, traumático.

Existe um risco do PT perder relevância quando Lula morrer?
É impossível predizer o que aconteceria quando Lula sair da política. O PT tem todas as condições de continuar sendo um partido muito importante no Brasil. Não tem nenhum outro partido com o grau de apoio que o PT tem no Brasil. É claro que há muita rejeição também, mas isso faz parte do jogo, porque um partido da importância do PT também é natural que ele seja muito rejeitado. E o PT é o partido mais sólido que existe hoje no Brasil.

Então, em tese, o PT não deveria perder relevância. Aí a questão talvez seja de pensar não na sucessão do Lula enquanto liderança carismática, mas pensar na direção do partido. Lula também orienta o partido e ele tem uma visão da política. Para dirigir um partido como o PT, precisa ter muita sabedoria no sentido de achar o caminho.

A minha análise da política brasileira é que você tem, fundamentalmente, três grandes campos, que não se confundem com um partido, mas os partidos navegam nesses campos: um campo popular, um campo de classe média e aquilo que eu chamo de partido do interior, que é um conglomerado que, de modo geral, coincide com o centrão.

O PT é o principal partido do campo popular. Em condições democráticas, o campo popular não vai deixar de existir. Ele existe desde que o Brasil se democratizou, em 1945. E vai continuar existindo, se houver democracia.

O grande problema é que as tentativas de golpe, às vezes bem-sucedidas, às vezes malsucedidas, como aconteceu em 2022, são para que o campo popular seja excluído da política.

No Brasil, uma parte das classes dominantes preferiria, às vezes com mais intensidade, às vezes com menos, que não houvesse essa competição eleitoral. Mas, havendo, e o PT sabendo se colocar, acho que não haveria por que ele perder relevância.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Sérgio Rodrigues- Por que o empregado agora é colaborador, FSP

 A estreia da segunda temporada da magnífica série "Ruptura" (Apple TV), nesta sexta (17), nos dá a oportunidade de refletir sobre o mais bem-sucedido eufemismo corporativo do nosso tempo: "colaborador".

Na comédia distópica dirigida por Ben Stiller, a poderosa Lumon, empresa-polvo de estética fascista, mantém um departamento em que empregados se submetem voluntariamente a um experimento radical de alienação do trabalho.

Por meio do implante de um chip cerebral, têm suas memórias bifurcadas: fora da empresa, nada sabem do que fazem lá dentro; quando estão dentro, ignoram a vida que levam fora. São os colaboradores perfeitos.

Uma pessoa com cabelo castanho claro e ondulado, vestindo um terno verde escuro e uma gravata preta, está segurando um sino branco em uma mão. A pessoa parece estar em um ambiente interno, com paredes claras e um ambiente minimalista. Um crachá verde está pendurado em seu pescoço.
A atriz Gwendoline Christie em cena da segunda temporada da série 'Ruptura' - Divulgação

No mundo em que o chip da Lumon ainda não existe (que se saiba), cabe à linguagem o mesmo trabalho. Em sites uníssonos, a velha turma do RH —também renomeado para "gestão de pessoas"— explica que a palavra empregado tornou-se arcaica. Empresas modernas contratam colaboradores.

Um parêntese: a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) continua a chamar de empregado quem, não detendo meios de produção, trabalha em troca de salário. Claro que para os gurus do colaboracionismo, interessados em sucatear a CLT, isso só atesta a beleza de sua novilíngua.

Cito um desses manuais: "Enquanto o empregado, em dias atuais, chega na empresa, faz o seu trabalho e vai embora, o colaborador tem a consciência da sua importância na organização, possui uma visão sistêmica do seu setor ou da empresa como um todo, incluindo suas metas, objetivos e não mede esforços para ‘colaborar’ com isso".

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Ênfase em "não mede esforços"! Não se chegou de um dia para o outro a esse nível de cinismo no mascaramento da natureza dos contratos de trabalho firmados entre partes desiguais —patrões de um lado, empregados do outro.

O percurso linguístico rumo ao colaborador incluiu um estágio em que se favoreceu a palavra funcionário (por tradição mais usada para o empregado do setor público) e até desvios burlescos como o de chamar empregadas domésticas de secretárias.

Também é parte desse fenômeno a onda de eufemização que varreu o mundo de meio século para cá — puxada, nesse caso, por setores progressistas da sociedade.

Hoje em dia, a menos que você seja um ogro de extrema direita, é bem difícil contestar a ideia de que acolchoar os atritos da realidade com palavras bonitas —substituindo "mendigo" por "pessoa em situação de rua", por exemplo— melhora a vida das pessoas. Mesmo que elas continuem sem ter onde morar.

O eufemismo pode ser um aliado do processo civilizatório, como prova a sacada brilhante do primeiro hominídeo que anunciou que iria "dar um pulo ali na moita". Pode também —o que talvez seja mais frequente— ser pura embromação. É preciso examinar caso a caso.

O da atual consagração de colaborador como sinônimo preferível de empregado está claramente a serviço do desmonte de um aparato histórico de proteção dos direitos dos trabalhadores.

Ainda melhor do que ser colaborador, claro, é dar dinheiro para um coach e virar "empreendedor individual". Mas esse chip os laboratórios da Lumon ainda estão aperfeiçoando. Deve ficar para a terceira temporada.