quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Rússia tem interesses no Ártico, diz Kremlin sobre fala de Trump, FSP

 Igor Gielow

São Paulo

Rússia tem interesses estratégicos na região do Ártico, afirmou o Kremlin ao comentar as falas de Donald Trump acerca de comprar a Groenlândia da Dinamarca, anexar o Canadá e retomar o controle do canal do Panamá.

"Estamos acompanhando bem de perto os bastante dramáticos desenvolvimentos da situação, mas até aqui, graças a Deus, no nível de declarações", disse nesta quinta (9) o porta-voz de Vladimir Putin, Dmitri Peskov.

Thomas Traasdahl - 4.out.2023/Ritzau Scanpix
A base espacial de Pituffik, operada pelos Estados Unidos na Groenlândia - Reuters

"O Ártico [que abrange partes do Canadá e da Groenlândia] é uma zona de nossos interesses nacionais, nossos interesses estratégicos. Estamos interessados em preservar a atmosfera de paz e estabilidade na zona ártica", afirmou.

O comentário comedido acerca das incendiárias diatribes de Trump, condensadas em uma entrevista na terça (7), reflete o jogo de espera pela posse do novo presidente. Na mesma entrevista em que expressou ambições expansionistas, o americano disse que compreendia os motivos pelos quais Putin invadiu a Ucrânia em 2022.

Ele se referia especificamente ao avanço da Otan, aliança militar liderada pelos EUA, sobre o país do Leste Europeu. A admissão de Kiev ao clube foi levantada em 2008 e, desde então, combatida primeiro com falas, depois com apoio a governos pró-Rússia, a anexação da Crimeia e suporte a separatistas na guerra civil iniciada em 2014 e, por fim, o conflito total.

Trump diz que quer colocar os dois lados para conversar e encerrar a guerra. Toda terminologia usada até aqui é desfavorável aos ucranianos, e Putin tem usado o bom momento militar desde 2024 para consolidar suas posições e avançar mais sobre as áreas que anexou mas não controla no leste e sul do vizinho.

Isso não significa que os russos o veem como um parceiro confiável, dado seu histórico mercurial. A imprensa estatal do país de Putin foi inundada de comentários sugerindo que a intenção de Trump não deve ser tratada como mera galhofa.

Pesa nisso a realidade: os EUA, por exemplo, já tentaram comprar a Groenlândia em outras ocasiões, pelo seu valor estratégico militar —os americanos têm lá sua principal base de monitoramento espacial de lançamentos de mísseis. A mudança climática adicionou outro item de cobiça, o acesso a vastos recursos minerais do país que emergem da calota de gelo em derretimento.

De quebra, o Ártico há muito é prioridade nacional russa, não menos por ser o caminho mais curto para um ataque com mísseis nucleares contra ou vindo dos EUA. A militarização recente da região sempre preocupou a Otan, que reagiu reforçando patrulhas a partir da Noruega.

Mais importante, contudo, é a questão econômica. O fato de que o gelo ártico tem virtualmente desaparecido nos verões, com o aquecimento global, abriu rotas comerciais para portos russos que precisam usualmente de quebra-gelos para viabilizar o caminho de navios.

Se o comércio com o Ocidente, que seria facilitado pela proximidade dada pela curvatura da Terra na área, está travado devido à guerra, o caminho para portos chineses é considerado vital. Além disso, a exemplo da questão da Groenlândia, a já existente exploração de hidrocarbonetos do Ártico ficou ainda mais favorecida.

Peskov não falou diretamente sobre Panamá e Canadá. Todos os governos envolvidos na fala de Trump, que causou grande barulho no mesmo dia em que a Meta de Mark Zuckerberg alinhava sua política de mediação de redes sociais à visão do novo presidente, protestaram.

Parceiros europeus de Washington, como França e Alemanha, tomaram as dores de Copenhague e também se queixaram das falas, mas de forma cautelosa. "A Europa reage de forma tímida, e é claro que está com medo de reagir às palavras de Trump. Logo, reage quase com um sussurro", tripudiou Peskov.

Nesta quinta, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, uma política surgida do populismo trumpista mas que faz um governo bem mais equilibrado do que se imaginava, saiu em defesa do americano. Disse que os EUA não irão usar força militar contra a Groenlândia, como o presidente eleito sugeriu na entrevista de terça.

Pedágio urbano em Nova York testa capacidade democrata de governar, Lucia Guimarães - FSP

 O combate à mudança climática enfrenta mais desafios narrativos nos EUA do que em qualquer outra democracia próspera. Bilionários ligados à indústria de combustíveis fósseis implementaram décadas de estruturas negacionistas, financiando pesquisas fraudulentas e comprando políticos.

Notando que US$ 9 é uma fração do custo imposto por motoristas ao resto dos nova-iorquinos, o vencedor do Nobel de Economia Paul Krugman comparou combater o pedágio a depositar o lixo no terreno de um vizinho por discordar do preço da coleta.

O automóvel não foi inventado pelos americanos, mas o começo da sua produção em massa, há 117 anos, alimentou a ideia do individualismo como aspiração democrática. Para o pedágio urbano ter sucesso, é preciso revisitar este mito.


Sérgio Rodrigues - Se liga, Brasil: nossa esperança é a Nanda, FSP

 O Globo de Ouro é uma boa ocasião para afirmar o que vinha se insinuando há anos à consciência nacional, mas esbarrava no transe autodestrutivo que acometeu o país na última década: Fernanda Torres é a maior artista brasileira da sua geração.

Coube um momento histórico difícil a essa fornada de brasileiros nascidos nos anos 1960, que é também a minha – chamada de Geração Coca-Cola por Renato Russo, um de seus membros mais ilustres.

Fazíamos música, mas nunca seríamos um Chico ou um Caetano. Montávamos peças, mas jamais chegaríamos à grandeza de Fernanda Montenegro. Escrevíamos livros, mas nem sinal de uma nova Clarice. Dirigíamos filmes, mas onde estava a fúria santa de Glauber?

Fernanda Torres com o prêmio no Globo de Ouro - Mario Anzuoni/Reuters

Cevada em ideias meio utópicas de país que perdiam vitalidade à medida que crescíamos para encarar o desafio realista da redemocratização, nossa geração desencantada foi uma ponte entre duas margens distantes.

De um lado ficava o Brasil que amava se ver como um país de cultura exuberante e generosa, portadora da promessa de uma nova sociabilidade, resultado de todas as misturas; do outro, uma terra cortada por rachaduras fundas, consciente de ser uma das mais desiguais do mundo, fértil em ódio e intolerância.

Se aquele país a pariu em berço esplêndido, no seio da realeza dos bambas, cabe a este, o crispado, testemunhar o apogeu da Nanda – como não só os amigos a chamam, com a intimidade de quem a viu perder bochechas desde a adolescente "Inocência", de 1983.

Agora este país ideologicamente partido ao meio vê Fernanda Torres apontar, com sua descomunal Eunice Paiva, nada menos que um caminho de reconciliação anímica.

Se soubermos aproveitá-lo, continuaremos a divergir politicamente, claro, mas um lado não mais exaltará a tortura como política de Estado e os torturadores, gente desprezível, como heróis.

Trata-se do mesmo lado que vive louvando a família e que agora se depara com o mal demoníaco feito por sua amada ditadura à família daquela mulher – que, coisa espantosa, não se quebra. Pelo contrário, chega a queimar a tela com uma grandeza que há muito não se via na arte brasileira.

Que isso aconteça quando a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro faz dois anos, com Braga Netto na cadeia e a investigação ainda rolando, é um milagre. À beira do novo governo Trump, tem jeito de farol para a humanidade.

Eis no que dá quando a gente deixa a extrema direita se criar, diz Nanda. Em termos culturais, os milhões de brasileiros que se comoveram com "Ainda estou aqui" são um fenômeno de escala geológica.

Vale lembrar que antes do mirante Eunice Paiva a estrada passou por uma também inédita Palma de Ouro em Cannes aos 20 anos, uma Alex de "Terra Estrangeira", uma Vani, uma Fátima e dois romances de primeira – "Fim" e "A Glória e seu Cortejo de Horrores".

Sem falar na montanha de crônicas, nos memes perfeitos e no senso de humor mordaz, inteligentíssimo – tragicômico, palavra que ela acredita definir nosso país –, no qual se detecta o DNA artístico de Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, presentes também em sua biografia.

Papo reto, Brasil. A Nanda é nossa melhor esperança.