quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Rui Tavares - O que o mundo poderia aprender com o 8 de Janeiro do Brasil, FSP

 Em um vídeo comentado na Folha por Marcos Augusto Gonçalves, Fernanda Torres se pergunta o que poderiam os estrangeiros aprender com Clarice Lispector, Machado de Assis ou Nelson Rodrigues.

Poderíamos também perguntar-nos: que pode o mundo aprender com o 8 de Janeiro de 2023? Creio que sei uma parte da resposta.

Foto mostra vidro trincado no Salão Nobre do Palácio do Planalto após ataques contra prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília - Gabriela Biló - 7.fev.23/Folhapress

Enquanto português, faço parte dos privilegiados que podem facilmente aprender com o Brasil sem ser brasileiro. Isso significa aceder ao tesouro da cultura brasileira desde pequeno —na minha infância, passada no Portugal dos anos 1970, um dos nossos grandes orgulhos era saber que Chico Buarque compusera "Tanto Mar", dedicada à nossa Revolução dos Cravos.

Portugal foi também provavelmente o país do mundo que mais atentamente seguiu os acontecimentos da violenta insurreição que invadiu, vandalizou, urrou e defecou nos belos edifícios da praça dos Três Poderes, em Brasília, há dois anos.

O resto do mundo tinha já assistido incrédulo aos acontecimentos precursores do 6 de Janeiro de 2021, quando uma multidão violenta invadiu o Capitólio, nos EUA. Mas poucos pelo mundo seguiram com a mesma ou ainda maior atenção o que se passou no Brasil dois anos depois.

Poderiam ter passado da incredulidade à aprendizagem. O poder da repetição forçou-nos a reconhecer que não estávamos apenas perante um evento fortuito mas perante um movimento de imposição autoritária, de demonização dos adversários e de fanatismo que não admite derrota. Um movimento essencialmente antidemocrata, por só aceitar a democracia pela metade (quando ganha).

Por muito semelhantes que tenham sido os eventos de Washington e Brasília na sua origem, a partir da sua recepção eles divergem vincadamente. Os estadunidenses —suas instituições, opinião pública e cultura política— não conseguiram extrair até ao fim as conclusões daquilo que tinham vivido.

Os brasileiros —de novo, não só as suas instituições, mas também setores decisivos da opinião pública e da cultura política— não tiraram conclusões apenas do que tinham vivido, mas também do que os seus homólogos da América do Norte não fizeram.

Em seu contraste, os eventos de Washington e Brasília oferecem uma lição sobre dois tipos de democracia: aquela a que poderíamos chamar de neutra, e a que foi convencionado chamar-se, após a obra do jurista antifascista alemão Karl Loewenstein, a "democracia militante".

Na "democracia neutra", o sistema democrático é entendido apenas como uma espécie de recipiente vazio onde qualquer ingrediente vale o mesmo, e cada um deve apenas ser contrariado pela supostamente natural "dinâmica dos fluídos" no interior do recipiente.

Na democracia militante, não vale tudo; a democracia precisa de ser defendida, e os democratas têm de ter a autoconfiança necessária para fazê-lo, por meio da lei, das instituições e da cultura política democrática.

Eu não sei, taticamente, qual é o melhor caminho. Mas sei, moralmente, que se é para a democracia cair, que caia lutando.

E aí estou como Fernanda Torres. Que pena o mundo não aprender mais com o Brasil.

Edson Fachin - Dois anos do 8 de Janeiro, FSP

 Edson Fachin

Ministro do Supremo Tribunal Federal

Eram 15h40 de 8 de janeiro de 2023 quando o Supremo Tribunal Federal foi invadido e violentamente vandalizado. A memória acesa alerta para que não se repita a infâmia (como denominou a ministra Rosa Weber, então presidente do tribunal).

Com a Constituição nas mãos e a segurança jurídica como bússola, a consolidação do respeito às instituições é o caminho que há de nos levar a um futuro no qual o que ocorreu seja, simplesmente, inconcebível.

Quando se levanta uma questão vital do Estado constitucional como essa, legitima-se institucionalmente, pelo tempo estritamente necessário, a defesa pública das condições de possibilidade da própria democracia. A imprescindível autonomia e independência da magistratura é consubstancial ao Estado de Direito democrático.

Nenhuma regra na ordem jurídica democrática em vigor autoriza ou permite o uso da força para a conquista do poder. Vivemos hoje esse tempo em que é necessário rememorar que a Constituição vigente escolheu o Estado e a sociedade fundamentados nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, no pluralismo político e na livre manifestação do pensamento. Essa via compreende harmonia social, soluções pacíficas e preceitos que impõem respeito à soberania popular exercida pelo voto direto e secreto.

Bolsonaristas invadem a Esplanada dos Ministérios - Evaristo Sá - 8.jan.23/AFP

A olho nu vê-se que o Brasil carrega desde 1988 não só alguns propósitos alcançados, mas também cinzas de muitos sonhos. E deve seguir, em especial, habitado por esperanças convocadas pela memória da redemocratização.

Há diversos objetivos fundamentais da República ainda não substancialmente atendidos, como erradicar a pobreza, promover o bem de todos, sem preconceitos, e construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda se mostra persistente o déficit ético de moralidade e de eficiência na gestão pública.

Dar concretude aos desígnios de 1988 também supõe segurança e redução da abissal desigualdade social que macula nossa sociedade. Essas faltas e outras falhas estruturais não legitimam a violência para quebrar as instituições. Foram abertas na Constituição múltiplas possibilidades, nela também foram estabelecidos limites.

Aqui e alhures registram-se agressões ao próprio Estado de Direito e às garantias constitucionais. "A violência, a intimidação e o desafio dirigidos aos juízes por causa do seu trabalho minam a nossa República e são totalmente inaceitáveis", escreveu recentemente o presidente da Suprema Corte norte-americana, John G. Roberts Jr.

Nos dias correntes, clama-se por paz. O bem-vindo chamado à paz deve vir, contudo, acompanhado da memória viva e da imprescindível justiça, na forma da lei e dentro das garantias fundamentais. Não se pode afastar da liberdade a responsabilidade. Fora da democracia, nas ditaduras, paz é apenas um simulacro. A paz fidedigna sabe à democracia, que representa o convívio entre diferentes.

Na legalidade constitucional há necessárias e suficientes soluções pacíficas dos dissensos à luz do devido processo, contraditório e ampla defesa: preservação das instituições com o respeito integral à autonomia e independência do Judiciário, alternância no poder com a soberania inviolável da vontade popular, numa sociedade aberta e plural.

A receita é simples, a prática é árdua. O complexo desafio não assombra. Precisamos fazer o que nos toca na genuína humildade. À política o que é da política; ao direito o que é do direito, com sobriedade e imparcialidade, para dar respostas institucionais seguras, equilibradas, com respeito ao dissenso, ao prestar de contas ao passado, e estar à altura de um futuro habitável.

Como lembra Mohamed Mbougar Sarr em seu livro "A Mais Recôndita Memória dos Homens," há fenômenos que são hápax por definição, aqueles somente vistos uma vez. Essa ideia é aplicável, na literatura, a autor ou obra singular.

Mesmo que em sentido um tanto diverso, parece-nos que pode ser atrelada a fato que se circunscreve a um único episódio: 8 de Janeiro nunca mais.