domingo, 8 de setembro de 2024

Marcus André Melo - A teoria dos elefantes brancos: por que há tantas obras inacabadas em nosso país?, FSP

Por que há tantas obras inacabadas em nosso país? Já faz parte da nossa paisagem como uma segunda natureza estradas que ligam nada a lugar nenhum; obras prontas que se mostram inviáveis ou com defeitos insanáveis: estaleiros, refinarias, cidades da música. A variável explicativa central é a corrupção.

Mas não dá conta de explicar muitos casos, onde não há evidências de desvios. Ou de imperícia técnica.
Uma explicação foi proposta por James Robinson e Ragnar Torvik em um paper intitulado sugestivamente "White Elephants". Robinson é um cientista político e coautor com Daron Acemoglu de "Por que as Nações Fracassam?" e "O Corredor Estreito: As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza". Os autores enumeram inúmeros elefantes brancos em vários continentes e formalizam o argumento.

Estruturas da pista da obra parada e abandonada do Rodoanel entre Perus (ao fundo) e Jardim Shangrila ao lado da av. Raimundo Pereira Magalhães, em São Paulo - Eduardo Knapp - 15.dez.22/Folhapress

Os elefantes brancos para os autores são produtos de uma falha política de mercado: de uma incapacidade de agentes políticos de lidar com o problema da credibilidade de suas promessas ao eleitorado. Do ponto de vista da sociedade, a melhor alternativa é quando os agentes políticos prometem bens públicos tais como educação pública e/ou infraestrutura com retorno social elevado. Mas nas novas democracias os incentivos para a oferta de bens públicos são bem menores do que a oferta de bens com benefícios concentrados para indivíduos (transferências) e firmas (isenções) (o que examinei aqui na coluna).

Projetos inviáveis ou economicamente deficitários representam uma forma de transferência de renda para grupos ou localidades. Sinalizam para um setor do eleitorado alinhado com o agente político responsável um compromisso crível de transferir renda. Mesmo sendo deficitários, geram empregos para setores alinhados com seus patrocinadores, e os custos socializados.

A volatilidade que os leva a ficarem inacabados ou funcionando com elevado custo social é produto de incentivos particularistas.

Em democracias funcionais, os partidos políticos agregam interesses universalistas e têm mais incentivos para ofertar bens públicos, e para alinhar responsabilidade fiscal com gasto.

Os elefantes brancos adquirem visibilidade com a alternância de poder entre grupos clientelares rivais, o que leva a ondas de novas iniciativas. Quando esta dinâmica se combina com a pequena corrupção, temos quadras esportivas inacabadas, viabilizadas por emendas orçamentárias; quando o faz com a grande, temos refinarias, estaleiros e siderúrgicas inacabadas e/ou deficitárias. Em muitos casos as obras foram embargadas por evidências de irregularidades.

Os órgãos de controle até as identificam, mas se subordinam à lógica majoritária, vale lembrar que o TCU é órgão ancilar do poder Legislativo, e não é parte do Judiciário. E, portanto, é vulnerável ao alinhamento entre Executivo e maiorias legislativas. Como ocorreu em 2005 e 2010, quando o TCU recomendou o bloqueio de verbas orçamentárias para obras com irregularidades, mas o presidente Lula logrou vetar a lei orçamentária, e liberar recursos. Houve novas paralisações, e as mesmas obras estão sendo retomadas atualmente. E mais, o STF acaba de determinar que as obras inacabadas tenham prioridade.

'Enfim só' é voto secreto para matrimônio solitário, Muniz Sodré, FSP

 O casamento da espanhola Vanessa Garcia consigo mesma foi noticiado pela imprensa como pitoresco "fait divers", isto é, como evento insólito que se desvia das normas naturais ou culturais. Essa expressão francesa, corrente no jornalismo do século passado, caiu em certo desuso, mas não sua aplicação conceitual a fenômenos semelhantes.

A passagem do tempo revela uma diferença crucial. O fait divers clássico atraía pela confusão entre real e imaginário, que dava margem a um texto fabulativo, como na ficção popular, impregnada por enigmas, acaso e destino. Também em eventos quase anedóticos: "A velhinha afugentou os assaltantes a tiros".

'Eco e Narciso' (1903), de John William Waterhouse
'Eco e Narciso' (1903), de John William Waterhouse - Reprodução

Com fatos dessa ordem, o jornalismo explorava o modo como o cotidiano podia corresponder à invenção romanesca, seduzindo leitores. Mas hoje, no campo da realidade digital, o inverossímil que pretende se tornar verdade adquire outro estatuto.

Assim é que, reeditando o mito de Narciso, Vanessa casou-se com a própria imagem, clara evocação do transe de assimilação do espelho eletrônico, a mídia, o que "não é explicado por uma relação imitativa, mas pelo feedback direto estabelecido entre a imagem e a realidade" (H.M. Enzensberger em "Guerra Civil"). Nessa indistinção entre imaginário e real, "a mídia fortalece a pessoa que se tornou irreal e lhe fornece uma prova de existência".

A mídia marca uma distância frente ao jornalismo tradicional, onde o sentido da notícia é singular, datado e relativo a uma conjuntura particular, enquanto o fait divers pertence a outro universo de discurso, com fundo intemporal e matéria mítica que dá sabor aos dramas. Na realidade eletrônica, entretanto, os dois se confundem, não se sabe mais quem é quem na atrofia autista da subjetividade.

No espelho, imagem não é o mesmo que pessoa física. E na mídia a fratura do sujeito singular multiplica-se a tal ponto que a pessoa digital não mais corresponde à original. Assim, por triunfo da simulação, Vanessa terminou casando-se com outra pessoa. A mesma lógica aplica-se ao que vem ocorrendo em relações eróticas mediadas por computador. Por envolverem duas pessoas, mesmo a distância, não se classificariam como prática solitária, mas como sexo real, sob o fetiche da máquina.

Afinal, o erotismo nunca foi da ordem da fisicalidade exclusiva dos corpos. Relatos e compêndios conhecidos sobre a arte erótica no passado indiano, chinês, japonês e árabe sempre fazem referência aos artifícios que incrementam a esfera do prazer. A reprodução pode ser demanda natural, mas não a complexidade simbólica da sexualidade, que é cultural.

Mas a degradação das relações humanas é um fator regressivo. A intensidade do vício em pornografia arruína o sexo real. Eliseo, protagonista da série argentina "Meu Querido Zelador" sentencia: "relação sexual é coisa de neandertal". Senão de golfinho que, solitário, vira tarado polimorfo.

Não se trata mais de crise do sentido, e sim de uma mutação radical, em que a retração da partilha do corpo se acompanha do fim da partilha da fala e de um recentramento estrutural do indivíduo sobre si mesmo. Talvez seja a face soft do fascismo que vem, mas pode ser também abertura para uma redefinição da sexualidade falocêntrica. Um aceno de adeus ao patriarcalismo.

Ruy Castro - Trevas a caminho, FSP

 Duke Ellington passava o ano se apresentando com sua orquestra em cidades dos EUA. Com ele, viajavam 18 músicos, alguns com suas mulheres, e a equipe de ajuda. Ao fim de cada show, tinham de procurar um hotel de beira de estrada que aceitasse hóspedes negros. O cantor Billy Eckstine, cujos olhos verdes fascinavam as mulheres brancas, não era aceito nos estados do Sul. E, em Las Vegas, Nat King Cole não podia frequentar e se hospedar nos cassinos e hotéis em que cantava para plateias de milhares. Duke, Billy e Nat eram negros. Eram também príncipes. Mas assim eram os EUA.


Por causa disso, muitos artistas negros americanos, principalmente jazzistas, se mudaram para a Europa, onde eram recebidos aos abraços. As cantoras Josephine Baker, Alberta Hunter, Adelaide Hall e Eartha Kitt, o clarinetista Sidney Bechet, o pianista Bud Powell, o baterista Kenny Clark e os saxofonistas Benny Carter, Don Byas, Lucky Thompson e Dexter Gordon foram só alguns dos que viveram anos em Paris, Londres e Copenhague e viajando pelo continente. No palco, eram estrelas. No dia a dia, sem problemas na rua —ou teriam voltado.

jazz só ganhou com isso. Em 1952, em Paris, o trompetista Clifford Brown, soterrado na orquestra de Lionel Hampton, fugia de madrugada para gravar com os músicos franceses. Foram esses discos que fizeram os americanos despertarem para o gênio que ele era. Em 1958, também em Paris, Miles Davis gravou a primeira trilha sonora ao vivo de um filme, improvisando à projeção do copião de "Ascensor para o Cadafalso", de Louis Malle, e ainda achava tempo para namorar Juliette Greco durante as trocas de rolo. Era como se a Europa tivesse olhos para tudo, menos para as cores de pele —nem mesmo contra imigrantes negros e pobres.

De repente, estamos vendo casos pesados de racismo e de volta da extrema direita na Alemanha, Áustria, Finlândia, França e até em Portugal. Supunha-se que, depois da Segunda Guerra, que quase a destruiu, a Europa fosse à prova dessa indignidade.

Nunca entendemos como há mil anos houve uma idade das trevas. Agora podemos estar às vésperas de entender.