quarta-feira, 24 de julho de 2024

Gustavo Alonso O Brasil e a negação do futebol multicultural, FSP

 Em recente coluna sobre a final da Eurocopa, o jornalista Juca Kfouri defendeu a tese de que os times europeus finalistas da competição se renderam à miscigenação. Enquanto o mundo incorpora a mistura racial, o Brasil perdeu a vanguarda desta bandeira.

Os dois grandes astros da vitória espanhola na Eurocopa são filhos de estrangeiros —Nico Williams, que tem sangue ganês, e Lamine Yamal, de pai marroquino e mãe da Guiné Equatorial.

Os jogadores da Espanha Nico Williams e Lamine Yamal

O time inglês também abraçou a miscigenação. Sem contar os que ficaram no banco, seis negros jogaram sob a bandeira da rainha: Ollie Watkins, Kyle Walker, Kobbie Mainoo, Bukayo Saka, Marc Guéhi e Jude Bellingham.

A França, derrotada pela Espanha nas semifinais, foi o time europeu que primeiro ressignificou seu futebol ao incorporar os filhos coloniais. Até a década de 1980, a equipe francesa era composta só por brancos e seu grande herói nacional era Michel Platini, um francês tipo-ideal. Nunca ganharam uma Copa do Mundo sequer.

Com o fim do colonialismo francês no século 20, muitos ex-colonos migraram para a metrópole. Seus filhos seriam campeões do mundo sob a bandeira da França. Na década de 1990, o futebol francês da geração Zinedine Zidane incorporou árabes e negros, abraçando a ideia de uma França multicultural. Essa França negra e árabe foi campeã duas vezes.

Pode até parecer que não há preconceito no Velho Mundo. Não é isso que Juca quis dizer, obviamente. O preconceito racial ainda está lá, e a trajetória de Vini Jr. na Espanha demonstra isso. Ainda assim, as sociedades não são unidimensionais e a grande quantidade de jogadores de outras descendências em times europeus demonstra que as brechas antirracistas existem. E são vitoriosas, para o desgosto dos racistas.

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Quando morei na França na primeira década do século, joguei futebol em ligas amadoras na periferia de Paris com árabes, negros e alguns brancos. Eles me contavam sobre uma França que não era mais "blanc-bleu-rouge" —branca, azul e vermelha, as cores da bandeira—, mas "blanc-black-beurre", ou branca, negra e manteiga. O fato de usarem "black", e não "noir" —preto em francês— diz muito sobre essa França mais aberta e menos autocentrada.

Para nós, brasileiros, "blanc" e "black" são bem compreensíveis. Mas e "beurre"? Para um francês "puro-sangue", o filho de argelinos Zidane não é branco, mas "amanteigado", ou seja, árabe. Faz-se questão de demarcar que pessoas como ele, mesmo nascidas em Marselha, não são de sangue francês.

Meus amigos falavam de "blanc-black-beurre" sem pudor, identificando-se com essa nova França, embora essa identidade ainda analisasse as raças como blocos sociais. Todos sabiam o quanto a sociedade francesa era racista, mas defendiam a utópica bandeira porque ela apontava para uma sociedade que aceitava a diferença, ainda que segmentada à francesa.

Juca argumentou corretamente que "o traço que distinguia os brasileiros no futebol está cada vez mais distribuído pelo mundo afora. Ótimo! Deixou de ser exclusividade dos inventores do jogo bonito de Didi, o Príncipe Etíope, do indígena Mané Garrincha, dos Ronaldos, Romário, Rivaldo, de Marta, de Pelé".

Há um dado positivo nisso, mas há também uma derrota para o Brasil. A defesa do multiculturalismo racial deixou de ser nossa bandeira, com nossa conivência. No Brasil, tornou-se fora de moda falar de democracia racial. Uma porta para o cancelamento se abre caso alguém use este termo na atualidade.

Palavras como "mulato" foram proscritas do vocabulário nacional por aqueles que buscam distinguir claramente a sociedade entre negros explorados e brancos exploradores. Não há mais lugar para a apologia da mistura, vista como conciliatória e ingênua. O hibridismo racial entre nós é desvalorizado e não serve mais nem como uma utopia de nação.

É claro que o racismo não acabou no Brasil, muito menos na Europa. Levantar a bandeira da miscigenação não significa calar-se sobre nossas cicatrizes. Apesar de nossas chagas, ainda teríamos muito a ensinar sobre miscigenação ao mundo.

Mesmo com todas nossas deficiências, conseguimos uma mistura que não é aquela segmentada da França. A democracia racial nunca foi atingida, mas quem, apesar dos pesares, esteve mais à frente do que nós, imperfeitos brasileiros?

Se quisermos deixar de ser colônias mentais do mundo europeu e americano, é preciso valorizar nossas riquezas sem vergonha ou autocomiseração. Que nos roubem a ideia, mas não a maternidade, afinal fomos nós que gestamos a miscigenação para o mundo.


'Somos invisíveis', diz dono de fábrica na Argentina que quebrou após ajuste de Milei, FSP

 Douglas Gavras

SÃO PAULO

Vai ser um desafio para o argentino Rogelio Bella, 45, imaginar a vida daqui em diante, sem a Bicipartes El Miguelito. A fábrica de assentos para bicicletas fechou as portas no fim de junho, após 56 anos.

O negócio que começou com o pai dele empregava 12 pessoas —algumas há mais de 30 anos— e sobreviveu a uma série de crises econômicas que afetaram a Argentina.

Um homem de barba e bigode está de pé em um armazém, vestindo uma camiseta preta. Atrás dele, há várias caixas de papelão empilhadas. À direita, há uma mesa com vários assentos de bilicleta coloridos. O ambiente parece ser um depósito ou área de armazenamento.
O argentino Rogelio Bella, da fabricante Bicipartes El Miguelito - @elmiguelito.ok no Instagram

A mais fresca na memória do empresário é a do "corralito", de 2001, que restringiu os saques dos argentinos, provocou a renúncia do presidente Fernando de la Rúa e terminou com mais de 30 mortos.

Mas o negócio não sobreviveu ao pacote de austeridade de Javier Milei.

As medidas implementadas pelo presidente para domar a inflação atingiram em cheio o consumo. O PIB (Produto Interno Bruto) caiu 5,1% no primeiro trimestre ante o mesmo período de 2023, e o governo sacrificou aposentadorias, demitiu servidores e parou obras públicas. Leia o relato de Rogelio Bella.

"A empresa começou em 1968 com o meu pai, que fabricava capas para assentos, em um quartinho de casa. Naquela época, eles eram de aço e se fazia uma capa de borracha costurada com diferentes tecidos. Usavam-se muito as bandeirinhas dos clubes de futebol do país para ilustrar. Ele costurava com os meus avós e a sua namorada na época, que veio a se tornar minha mãe.

No fim dos anos 80 e início dos anos 90, houve uma reestruturação para fabricar o modelo atual, de base plástica. Mais tarde, meu pai conseguiu um sócio e o filho dele esteve comigo até o fim, éramos a segunda geração à frente do negócio.

De alguma forma, toda a minha vida transcorreu ao redor dela, desde muito cedo. Estudei em uma escola técnica e, quando chegava o verão, trabalhava algumas horas para juntar uns trocados e sair com amigos. Há cerca de 23 anos estava na gerência.

Imagens de duas bicicletas com bancos feitos pela empresa do argentino Rogelio Bella, 45, a fabricante de assentos para bicicletas Bicipartes El Miguelito. A primeira imagem tem a Casa Rosada ao fundo, a segunda tem um cartaz em que se lê "Onde o transporte não chega, a bicileta te leva"
Assentos para bicicleta feitos pela Bicipartes El Miguelito - @elmiguelito.ok no Instagram

Aprendi a andar entre as máquinas. Quando era pequeno, ver tudo funcionando era como me imaginar na Nasa. Na adolescência, tive uma ideia para resolver um problema na fabricação dos assentos que foi usada até o último dia. Na época, me senti meio como Einstein pela descoberta. Viajei por todo o país durante muitos anos, graças à ela. Tenho lembranças que para mim serão inesquecíveis.

Somos de Carrizales (província de Santa Fé), um povoado de 1.000 habitantes a 60 quilômetros de Rosário, e dávamos trabalho a 12 famílias daqui. Dá para imaginar o que isso significa: não há outras oportunidades de trabalho, é um lugar muito vinculado à atividade agrícola e éramos, basicamente, a única indústria local.

Era a única empresa que durante mais de 50 anos ininterruptamente fabricou o produto no país. Em Buenos Aires há algumas empresas muito menores que fazem um pouco e a maioria da produção é importada. Acredito que, como fábrica nacional, éramos a de maior presença no mercado.

Sobrevivemos à crise de 2001, do 'corralito', e a muitas outras. Nós fazíamos um produto que na Argentina, seu principal competidor é a importação. É difícil competir com os preços do Brasil e, sobretudo, com os da China. Temos um problema sério com a diferença que pagamos pelas matérias-primas em relação ao que paga um industrial brasileiro ou um chinês.

A empresa tinha um ponto de equilíbrio mensal de entre 7.000 e 8.000 unidades. E de janeiro até 30 de junho, quando fechamos, não vendemos 8.000 unidades. Não é que não chegamos a isso nas vendas mensais, não chegamos a vender 8.000 unidades em seis meses. Foi um duro golpe para uma empresa como a minha, que vivia unicamente das vendas.

Ficou impossível de sustentar. Começamos a consumir nossas reservas, nossas economias, e chegamos ao ponto em que já não havia mais o que queimar, nem para pagar salários, nem para comprar matérias-primas. Então, tomamos a triste decisão de fechar as portas.

A parte mais difícil disso foi dizer que as pessoas perderiam seus empregos, é algo que não desejo nem ao pior dos meus inimigos. Dos 12 funcionários, 6 tinham mais de 30 anos de empresa —os outros tinham 18, 17, 15, 12 anos.

O que vem pela frente também é complicado, porque temos que juntar um monte de dinheiro para pagar as indenizações. Estamos colocando todo o nosso capital, que levamos 50 anos para construir, à venda para pagar os empregados, para que eles tenham ao menos algo em que se agarrar.

A verdade é que não vejo que a economia argentina irá se recuperar. Cerca de 70% do emprego no país é gerado pelas pequenas e médias empresas, que estão sendo maltratadas por este governo: usando desde regimes de incentivo para grandes investidores externos —que vão vir competir de forma totalmente desleal— até com a profunda recessão em que se encontra o país e a consequente falta de vendas.

Não sou otimista com o futuro econômico e isso nem é o que mais me preocupa. Temo que venha uma destruição do tecido social que pode nos colocar em um novo 2001. Do fundo do meu coração, tenho medo de que novamente voltemos a ver as imagens que tanto doeram aos argentinos.

Sinto que somos invisíveis. Não tenho o telefone de ninguém, imagine, estou em um povoado pequeno. Mas pelo X, como se chama o Twitter agora, tentei falar com pessoas de todo o amplo espectro da política argentina. A verdade é que a ninguém interessou a história e isso também me preocupa.

Deste governo não espero nada, mas que ninguém tenha ligado para oferecer uma mão, me preocupa muito. Mas essa é a história deste país. A política está cuidando de seus privilégios e quem trabalha está sobrevivendo mal."