segunda-feira, 15 de julho de 2024

Universalização do saneamento pode atrasar 37 anos no ritmo atual, diz instituto, FSP

 

Guilherme Bento
SÃO PAULO

O atendimento de 99% da população com abastecimento de água e 90% com esgotamento sanitário até 2033, previsto pelo novo Marco Legal do Saneamento Básico —que completa quatro anos nesta segunda-feira (15) — , pode ocorrer só em 2070, de acordo com estudo do Instituto Trata Brasil (ITB).

O cenário no Brasil é "precário", segundo o ITB, com cerca de 32 milhões de brasileiros sem acesso a água potável e mais de 90 milhões sem coleta de esgoto.

Para atingir a meta, o governo deveria desembolsar R$ 46,3 bilhões anualmente de 2023 a 2033 e, assim, alcançar os R$ 509 bilhões que ainda faltam ser investidos. Isso é mais que o dobro da média de R$ 20,9 bilhões destinada anualmente a esse serviço no período de 2018 a 2022.

A imagem retrata uma estação de tratamento de água com vários tanques e estrutura pesada para a purificação deste recurso natural.
Estação de Tratamento de Água da Sanepar em Maringá, PR - Sergio Ranalli/Folhapress

De acordo com o estudo, seguindo as taxas de evolução do atendimento de água, coleta e tratamento de esgoto de 2018 a 2022, o país atingiria apenas a 88% de abastecimento de água e 65% de coleta e tratamento de esgoto.

Ao todo, 579 municípios estão com contratos irregulares em relação à prestação dos serviços básicos, o que abrange quase 10 milhões de pessoas.

A maioria das cidades em situação irregular estão em estados do Norte e do Nordeste do Brasil. São esses locais que enfrentam maiores gargalos em atingir as metas propostas pelo novo Marco, segundo o estudo.

Nesses municípios, o investimento é de apenas R$ 27,39 per capita. Em contrapartida, os municípios em situação regular investiram quase R$ 90 a mais por habitante.

Aproximadamente 5% da população brasileira reside em municípios com irregularidades nos contratos para prestação dos serviços básicos. Esse índice é superior a 55% em estados como Acre, Paraíba e Piauí, chegando a 100% dos municípios, como o caso de Roraima.

Os projetos de concessão de saneamento já em execução e outros em fase de estruturação têm o potencial de impactar mais de 100 milhões de pessoas e, segundo Gesner Oliveira, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV) e sócio-executivo da GO Associados, parceira do estudo, o avanço dos indicadores de saneamento básico entre 2018 e 2022 e os projetos em curso indicam "que o marco regulatório está ganhando tração."

O QUE É O MARCO DO SANEAMENTO?

Marco Legal do Saneamento Básico (14.026/2020), sancionado em julho de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), estabeleceu metas para a universalização dos serviços de água e esgoto, e buscou atrair investimento privado para o setor.

Na prática, a medida alterou a forma como os contratos de concessão são feitos, tornando obrigatória a licitação prévia —o que abriu maior espaço para a participação de empresas privadas na disputa.

A legislação também definiu a ANA (Agência Nacional das Águas) como agente regulador para o setor, criou um Comitê Interministerial de Saneamento Básico, e fixou metas para acabar com os lixões a céu aberto no Brasil.

A aprovação do marco ocorreu em junho de 2020, no Senado, após polêmicas e discussões. Na época, toda a bancada do PT, com seis senadores, votou contra.

Um dos pontos criticados era a velocidade que os defensores da medida estavam dando ao trâmite. Para os opositores, o debate de um novo marco do saneamento precisaria ser feito com cautela e num momento menos conturbado da pandemia, que havia sido decretada três meses antes.

Mas o principal ponto em debate era o incentivo à privatização do serviço. Parlamentares contrários à proposta questionavam a possibilidade de aumento nas tarifas e o risco de desassistência em regiões com pouca atratividade comercial.

QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS MEDIDAS DO MARCO DO SANEAMENTO?

A nova legislação definiu a meta de ampliar o acesso à água potável para 99% da população até 2033. Até lá, o tratamento e a coleta de esgoto também devem alcançar 90%.

Até 2022, cerca de 16% da população brasileira não tinha acesso à água potável e 44% não eram servidos de esgotamento sanitário, segundo dados no portal do Snis (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento).

O prazo para cumprimento das metas, contudo, poderá ser acrescido de mais sete anos (até 2040), caso fique comprovado inviabilidade técnica ou financeira.

O custo estimado da universalização dos serviços é estimado em cerca de R$ 500 bilhões, o que leva em conta a realização de aportes para expansão da infraestrutura e recursos para recompor a depreciação dos ativos existentes.

As cifras criaram expectativas para a economia. Em razão das carências do setor, o marco do saneamento foi visto como um ponto de estímulo do crescimento e impulso para a atração de novos investimentos.

O QUE MUDOU NOS CONTRATOS DE SANEAMENTO?

Os municípios são os responsáveis pelos serviços de saneamento e, no modelo anterior, podiam celebrar contratos com empresas estaduais sem licitação. Com o novo marco, isso deixou de ser permitido, abrindo assim mais espaço para empresas privadas competirem pelos contratos.

A legislação determina a realização de licitação, com participação de prestadoras públicas e privadas, e acaba com o direito de preferência das empresas estaduais.

Na prática, a medida extingue o chamado contrato de programa, que permitia às companhias estaduais fornecerem os serviços de água e esgoto sem concorrência direta.

Mário Saadi, sócio do Cescon Barrieu Advogados na área de infraestrutura, explica que as empresas privadas não eram proibidas de participar do setor de saneamento anteriormente.

No entanto, historicamente, os serviços ficavam na mão de companhias estaduais, o que, na visão dele, ocorria por motivos políticos, não técnicos.

"Isso fez com que os investimentos ficassem aquém daquilo que o país precisava", afirma. "Havia contratações diretas com regras pouco claras em relação a investimentos e metas que precisavam ser cumpridas, e sem regulação incisiva."

O marco obrigou a realização de licitações, mas permitiu que os contratos existentes na época pudessem ser continuados, desde que as empresas comprovassem, até 2022, a viabilidade econômico-financeira para atingir as metas de universalização.

QUEM É RESPONSÁVEL PELA REGULAÇÃO DO SANEAMENTO?

O marco do saneamento básico determinou que cabe à ANA o papel de criar as normas para todas as esferas da administração pública —municipal, estadual e federal— e ajudar na padronização das regras do setor.

A agência é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, que opera com autonomia administrativa.

O discreto charme proletário da Vila Maria Zélia, FSP

 

SÃO PAULO

Quem nunca foi na Vila Maria Zélia deveria ir. Trata-se de um complexo residencial no bairro do Belenzinho, na zona leste de São Paulo, que serviu de residência nas primeiras décadas do século 20 para centenas de trabalhadores da fábrica da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, do empresário Jorge Street. O lugar remete ao passado proletário da região. Street, tido como um bom patrão, inaugurou a primeira creche para filhos de operários no país, mas também era a favor do trabalho para menores de 14 anos e contra a lei de férias, por exemplo.

Fundada em 1917, a Maria Zélia, projeto do arquiteto Paul Pedraurrieux, foi considerada um modelo de vila operária no seu tempo e era equipada com escolas para meninos e meninas, armazém, jardim de infância, farmácia, serviços médicos, campo de futebol, salão para bailes, sapataria, restaurante e a capela de São José. Ficava ao lado da fábrica e era como uma pequena cidade dentro de São Paulo onde os moradores encontravam tudo aquilo que precisavam.

Casa na Vila Maria Zélia
Vila operária mantém traçado original das ruas, mas maioria das construções está descaracterizada

O nome Maria Zélia foi uma homenagem de Street à sua filha, falecida de tuberculose em 1915, quando a vila estavam sendo construída. O lugar foi parcialmente preservado, mantém o mesmo traçado das ruas da época em que foi fundado e vários prédios de uso coletivo em ruínas. É o caso do armazém e das escolas. A grande maioria das casas foi descaracterizada mas resta aquele ar provinciano propiciado pelo isolamento e pela tranquilidade.

O momento da fundação da vila era de grande tensão trabalhista. Justamente em 1917 eclodiu a primeira greve geral no Brasil, deflagrada no Cotonifício Crespi, que ficava a 12 minutos da bicicleta da Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Os operários, em especial os anarquistas, criticavam o modelo de moradia proposto por Street e o viam como uma forma de dominação. O jornal proletário "A Plebe" chamava a Maria Zélia de "feudo". Dizia que os trabalhadores ficavam num bairro fechado e sob controle do patrão.

Prédio na Vila Maria Zélia
Prédios abandonados e tombados na Vila Maria Zélia pertencem ao INSS e estão ameaçados de ruir

Para morar na vila, além de pagar aluguel, descontado do salário, os trabalhadores precisavam seguir uma série de regulamentos moralizantes. O horário para circular pelas ruas ou receber visitantes era controlado e a permanência na casa de pessoas que não fossem da família, vetada. Havia um prédio só para solteiros. Os funcionários eram observados no seu tempo livre.

Por outro lado, a vida na vila proporcionava uma convivência intensa e constante entre os operários, o que permitia novas formas de socialização e o desenvolvimento de vínculos culturais e identitários nem sempre alinhados com os interesses do empresário.

Não eram todos os empregados da companhia que moravam na vila. A maioria dos trabalhadores de baixo escalão vivia em outros lugares. A Companhia Nacional de Tecidos de Juta tinha 2,5 mil funcionários, mas a Maria Zélia contava com apenas 198 casas de seis diferentes tipos. Elas eram distribuídas em função do tamanho das famílias, muitas com diversos membros, inclusive crianças, trabalhando na fábrica.

Casa preservada na Vila Maria Zélia
Raro imóvel na Maria Zélia que preserva características originais: vila tinha seis tipos de casas

O domínio de Street sobre a Vila Maria Zélia durou até 1924, quando, por conta de crises econômicas e dívidas, ele teve que vender a Companhia Nacional de Tecidos de Juta para a família Scarpa. Em 1934, a empresa foi à falência e ficou sob controle do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), atual INSS. Em 1969, as casas da vila começaram a ser vendidas aos seus inquilinos, por meio de financiamento do BNH (Banco Nacional de Habitação).

Tombada desde 1992 pelo Condephaat e pelo Conpresp por seus bens de interesse histórico, arquitetônico e social, a vila, apesar de sua rica tradição oferece hoje uma paisagem desoladora por causa dos edifícios coletivos em frangalhos. Mesmo assim ainda há um discreto charme e alguma agitação cultural por ali, proporcionada pela Associação Cultural Vila Maria Zélia, que costuma organizar festas em torno da capela, e pelo grupo XIX de Teatro, fundado em 2001, que converteu o lugar em um espaço de pesquisa, difusão e formação teatral.

Kat Torres, a ex-modelo e influencer brasileira condenada por tráfico humano e escravidão, FSP BBC News

 Hannah Price

João Fellet
DA BBC EYE INVESTIGATIONS E DA BBC NEWS BRASIL

Quando duas jovens brasileiras foram consideradas desaparecidas em setembro de 2022, suas famílias e o FBI (polícia federal dos EUA) iniciaram uma busca desesperada para encontrá-las.

Tudo o que sabiam era que elas estavam morando com a influenciadora brasileira Kat Torres nos EUA.

Em 28 de junho de 2024, Kat foi condenada a oito anos de prisão por submeter uma dessas mulheres a tráfico humano e condições análogas à escravidão.

Kat Torres deu entrevista de dentro do presídio de Bangu - BBC
Uma investigação sobre acusações de outras mulheres contra Kat está em curso no Brasil.

Como é que a ex-modelo que conheceu Leonardo DiCaprio e apareceu na capa de revistas internacionais conseguiu atrair suas seguidores para a exploração sexual?

O tema é objeto do documentário "Do like ao cativeiro: ascensão e queda de uma guru do Instagram", publicado no canal da BBC News Brasil no YouTube.

Kat Torres fala à BBC de dentro de presídio em Bangu, no Rio de Janeiro - BBC

"Para mim ela era uma pessoa de confiança que entendia a minha dor, entendia o que eu estava passando", diz Ana ao descrever o início de sua relação com Kat após conhecê-la pelo Instagram, em 2017.

Ana não era uma das mulheres desaparecidas que motivaram a busca do FBI - mas também foi vítima da coerção de Kat e foi fundamental no resgate dessas mulheres.

Ela diz que se sentiu atraída pela trajetória de Torres, da infância numa favela em Belém até as passarelas internacionais e as festas com celebridades de Hollywood.

"Ela dizia que já tinha superado vários relacionamentos abusivos e era justamente isso que eu tava buscando", disse Ana a uma equipe da BBC Eye Investigations e da BBC News Brasil.

Ana se mudou de Boston para Nova York para trabalhar como assistente de Kat em 2019 - BBC

Ana estava numa situação vulnerável. Ela diz que teve uma infância violenta, mudou-se sozinha do sul do Brasil para os EUA e já enfrentou um relacionamento abusivo.

Kat Torres havia publicado recentemente o livro autobiográfico A Voz, no qual afirma poder fazer previsões e ter poderes espirituais, e já havia aparecido em programas de TV no Brasil.

"Ela estava em capas de revistas, ela foi vista com pessoas famosas como Leonardo DiCaprio, tudo o que eu vi parecia confiável", diz ela.

Ana diz que ficou especialmente atraída pela abordagem de Torres sobre espiritualidade.

O que Ana não sabia é que a história inspiradora que Kat contava se baseava em meias verdades e mentiras.

O ator e escritor Luzer Twersky, que dividiu um apartamento com Kat em Nova York, nos contou que a brasileira mudou após frequentar círculos de ayahuasca com amigos em Hollywood.

Originária da Amazônia, a ayahuasca é uma bebida psicodélica considerada sagrada por algumas religiões e povos indígenas.

"Foi quando ela começou a perder o controle", diz ele.

Twersky disse que também acreditava que Kat estava trabalhando como sugar baby, recebendo dinheiro por envolvimentos amorosos com homens ricos e poderosos - e que bancavam o apartamento que ele dividia com a amiga.

Luzer Twersky dividiu um apartamento com Kat nos Estados Unidos - BBC

O site de Kat tinha um serviço de assinatura e prometia aos clientes "amor, dinheiro e autoestima com que você sempre sonhou".

Vídeos dela ofereciam conselhos sobre relacionamentos, bem-estar, sucesso nos negócios e espiritualidade - incluindo hipnose, meditação e programas de exercícios.

Por US$ 150 adicionais (R$ 817), os clientes podiam agendar consultas em vídeo individuais com Kat, com as quais ela dizia ser capaz de resolver qualquer problema.

Amanda, outra ex-cliente, diz que Kat a fez se sentir especial.

"Todas as minhas dúvidas, meus questionamentos, minhas decisões: sempre levava primeiro para ela, para que pudéssemos tomar decisões juntas", diz Amanda.

Mas os conselhos de Kat podiam levar a mudanças radicais.

Ana, Amanda e outras ex-seguidoras dizem que se viram cada vez mais isoladas psicologicamente de amigos e familiares e dispostas a fazer qualquer coisa que Kat sugerisse.

Quando Kat pediu a Ana em 2019 que se mudasse para a casa dela em Nova York para trabalhar como sua assistente, ela concordou.

Ela estava cursando uma faculdade de Nutrição em Boston, mas, em vez disso, decidiu fazer as aulas virtualmente e diz que aceitou uma oferta para cuidar dos pets de Kat, cozinhar, lavar e limpar por cerca de US$ 2.000 (R$ 10.900) por mês.

Ao chegar ao apartamento de Kat, porém, ela logo percebeu que as condições não correspondiam à perfeição exibida no Instagram.

"Foi chocante porque a casa estava muito bagunçada, muito suja, não cheirava bem", diz ela.

Ana diz que Kat parecia incapaz de fazer até mesmo as coisas mais básicas, como tomar banho, sozinha, porque não suportava ficar sem a companhia de alguém.

Ela diz que tinha de estar constantemente à disposição de Kat e só podia dormir algumas horas por vez num sofá sujo com urina de gato.

Vídeos de Kat nas redes sociais tratavam de beleza, espiritualidade e sucesso profissional - Kat Torres/no Istagram

Ela diz que, às vezes, se escondia na academia do prédio para dormir no colchonete de exercícios.

"Agora vejo que ela estava me usando como uma escrava", diz Ana.

Ela diz ainda que nunca foi paga.

"Senti como se estivesse presa", diz ela. "Provavelmente fui uma das primeiras vítimas de tráfico humano da Kat."

Ana havia desistido de sua acomodação universitária em Boston, então não tinha para onde voltar e não tinha renda para pagar por uma moradia alternativa.

Ana conta que Kat, ao ser confrontada, ficou agressiva, o que fez Ana relembrar períodos em que viveu violência doméstica.

Depois de três meses, Ana encontrou uma maneira de escapar e foi morar com um novo namorado.

Mas esse não foi o fim da participação de Ana na vida de Kat.

Quando as famílias de outras duas jovens brasileiras relataram seu desaparecimento em setembro de 2022, Ana sabia que precisava agir.

Naquele momento, Kat estava casada com um homem chamado Zach, um jovem de 21 anos que ela conheceu na Califórnia, e eles moravam numa casa alugada de cinco quartos nos subúrbios de Austin, no Texas.

Repetindo o padrão usado com Ana, Kat tinha como alvo suas seguidoras mais dedicadas, tentando recrutá-las para trabalharem para ela.

Em troca, ela prometeu ajudá-las a realizar seus sonhos, se valendo de informações pessoais íntimas que haviam compartilhado com ela durante suas sessões de coaching.

Desirrê Freitas, uma brasileira que morava na Alemanha, e a brasileira Letícia Maia - as duas mulheres cujo desaparecimento motivou a operação liderada pelo FBI - mudaram-se para morar com Kat.

Outra brasileira, que chamamos de Sol, também foi recrutada.

Kat apresentou nas redes sociais o que chamou de seu "clã de bruxas".

Casa de cinco quartos onde Kat morava nos subúrbios de Austin, Texas - BBC

A BBC descobriu que pelo menos mais quatro mulheres foram quase convencidas a se mudar para a casa de Kat, mas desistiram.

Algumas das mulheres entrevistadas estavam receosas de aparecer num documentário da BBC, temendo receber agressões on-line e ainda traumatizadas por suas experiências.

Mas conseguimos verificar seus relatos usando documentos judiciais, mensagens de texto, extratos bancários e um livro de Desirrê sobre suas experiências, @Searching Desirrê, publicado pela DISRUPTalks (2023).

Desirrê conta que, no caso dela, Kat lhe comprou uma passagem de avião para que deixasse a Alemanha e fosse encontrá-la, citando pensamentos suicidas e pedindo ajuda.

Kat também é acusada de convencer Letícia, que tinha 14 anos quando iniciou sessões de coaching com ela, a se mudar para os EUA para um programa de au pair (babá que mora na residência da família atendida) e depois morar e trabalhar com ela.

Quanto a Sol, ela diz que concordou em ir morar com Kat depois de ficar sem teto e que foi contratada para fazer leituras de tarô e dar aulas de ioga.

Mas não demorou muito para que as mulheres descobrissem que a realidade era muito diferente do conto de fadas que lhes tinha sido prometido.

Em poucas semanas, Desirrê diz que Kat a pressionou a trabalhar em um clube de strip e disse que, se não obedecesse, teria que devolver todo o dinheiro gasto com ela em passagens aéreas, hospedagem, móveis para seu quarto e até mesmo rituais de "bruxaria" feitos por Kat.

Desirrê diz que, além de não ter esse dinheiro, também acreditava na época nos poderes espirituais que Kat dizia ter. Por isso, quando Kat ameaçou amaldiçoá-la por não seguir suas ordens, ela ficou apavorada.

A contragosto, Desirrê então concordou em trabalhar como stripper.

Um gerente do clube de strip-tease, James, disse à BBC que ela trabalhava muitas horas por dia, sete dias por semana.

Desirrê e Sol dizem que as mulheres na casa de Kat em Austin eram submetidas a regras rígidas.

Eles afirmam que foram proibidas de falar entre si, precisavam da permissão de Kat para sair de seus quartos - até mesmo para usar o banheiro - e foram obrigadas a entregar todo o dinheiro que recebiam.

Kat Torres com Desirrê (centro) e Letícia (à direita) - Kat Torres/no Istagram

"Era muito difícil sair da situação porque ela ficava com nosso dinheiro", disse Sol à BBC.

"Foi assustador. Achei que algo poderia acontecer comigo porque ela tinha todas as minhas informações, meu passaporte, minha carteira de motorista."

Mas Sol diz que percebeu que precisava fugir depois de ouvir um telefonema no qual Kat dizia a outra cliente que ela deveria trabalhar como prostituta no Brasil como "castigo".

Sol conseguiu sair com a ajuda de um ex-namorado.

Enquanto isso, as armas que o marido de Kat mantinha em casa começaram a aparecer regularmente em posts no Instagram e se tornaram uma fonte de medo para as mulheres.

Nessa época, Desirrê conta que Kat tentou convencê-la a trocar o clube de strip-tease pelo trabalho como prostituta. Ela diz que recusou e, no dia seguinte, Kat a levou de surpresa para um campo de tiro.

Assustada, Desirrê diz que acabou cedendo à exigência de Kat.

"Muitas perguntas me assombravam: 'Será que eu poderia parar quando quisesse?'", escreve Desirrê em seu livro.

"E se a camisinha estourasse, eu pegaria alguma doença? Poderia [o cliente] ser um policial disfarçado e me prender? E se ele me matasse?"

Se as mulheres não cumprissem as metas de dinheiro estabelecidas por Kat, que subiram de US$ 1 mil dólares (R$ 5,45 mil) para US$ 3 mil (R$ 16,35 mil) por dia, não eram autorizadas a voltar para casa naquela noite, dizem.

"Acabei dormindo várias vezes na rua porque não consegui bater a meta", diz Desirrê.

Extratos bancários obtidos pela BBC mostram que Desirrê transferiu mais de US$ 21.000 (R$ 114,5 mil) para a conta de Kat somente em junho e julho de 2022.

Ela diz que foi forçada a entregar uma quantia ainda maior em dinheiro.

A prostituição é ilegal no Texas, e Desirrê diz que Kat ameaçou denunciá-la à polícia quando ela cogitou parar.

Em setembro, amigos e familiares de Desirrê e Letícia no Brasil criaram campanhas nas redes sociais para encontrá-las depois de meses sem contato com as duas.

Nesta altura, elas estavam quase irreconhecíveis. Seus cabelos castanhos foram tingidos de loiro platinado para combinar com os de Kat.

Desirrê afirma que, nesse período, todos seus contatos telefônicos foram bloqueados e que ela obedeceu às ordens de Kat sem questionar.

À medida que a página do Instagram @SearchingDesirrê ganhava força, a história chegou ao noticiário no Brasil.

Os amigos de Desirrê temiam que ela tivesse sido assassinada, e a família de Letícia fez apelos desesperados para que as duas voltassem para casa.

Ana, que morou com Kat em 2019, disse que ficou alarmada assim que viu as notícias. Ela diz ter logo percebido que Kat "estava retendo outras meninas".

Junto com outras ex-clientes, Ana começou a contatar o maior número possível de agências de segurança, incluindo o FBI, na tentativa de prender a influenciadora.

Cinco meses antes, ela e Sol haviam denunciado Torres à polícia dos EUA - mas dizem que não foram levadas a sério.

Num vídeo que gravou na época como prova e partilhado com a BBC, ouve-se Ana dizendo, em inglês: "Esta pessoa é muito perigosa e já ameaçou me matar".

Em seguida, foram encontrados perfis das mulheres desaparecidas em sites de acompanhantes e prostituição. As suspeitas de exploração sexual, que circulavam nas redes sociais, pareciam se confirmar.

Em pânico com a atenção da mídia, Kat e as mulheres viajaram mais de 3 mil quilômetros do Texas até o Estado de Maine.

Em vídeos no Instagram, Desirrê e Letícia negaram estar ali contra sua vontade e exigiram que as pessoas parassem de procurá-las.

Mas uma gravação obtida pela BBC indica o que realmente estava acontecendo naquele momento.

A polícia nos EUA monitorava o grupo, e um policial conseguiu entrar em contato com Kat por videochamada para avaliar a situação das mulheres.

Pouco antes do início da conversa, Kat diz no vídeo:

"Ele vai começar a fazer perguntas. Gente, eles são truqueiros. Ele é um detetive, muito cuidado. Pelo amor de Deus, vou te chutar se alguém disser alguma coisa. Eu vou dar um grito."

Em novembro de 2022, a polícia convenceu Kat e as outras duas mulheres a comparecerem pessoalmente a uma delegacia no Condado de Franklin, no Maine.

O policial que interrogou Kat, Desirrê e Letícia - o detetive David Davol - disse à BBC que ele e seus colegas ficaram preocupados após notarem uma série de sinais, como desconfiança das mulheres em relação aos policiais, seu isolamento e relutância em falar sem a permissão de Kat.

"Traficantes de pessoas nem sempre são como nos filmes, onde você tem uma gangue que sequestra pessoas. É muito mais comum que seja alguém em quem você confia."

Em dezembro de 2022, as duas mulheres haviam retornado em segurança ao Brasil.

Segundo a ONU, o tráfico de pessoas é um dos crimes que mais crescem no mundo, gerando cerca de US$ 150 bilhões (R$ 817 bilhões) em lucros por ano no mundo.

Ele acredita que as redes sociais oferecem uma plataforma para que traficantes encontrem e seduzam vítimas.

Durante entrevista à BBC, Kat Torres negou todas as acusações e disse não ter cometido qualquer crime - BBC

Em abril deste ano, nossa equipe recebeu uma permissão judicial para entrevistar Kat na prisão - a primeira entrevista presencial que ela concede desde que foi presa.

Naquela época, Kat ainda aguardava o resultado de um julgamento relacionado ao caso de Desirrê.

Sorrindo, Kat se aproximou de nós com uma atitude calma e serena.

Ela se disse completamente inocente, negando que qualquer mulher tivesse vivido com ela ou que ela tivesse forçado alguém a se prostituir.

"Eu tive crises e mais crises de riso com tanta mentira que eu escutei. Todo mundo na sala podia ver que as testemunhas estavam mentindo", afirmou..

"As pessoas me chamam de guru falsa, mas ao mesmo tempo elas falam: ela é muito perigosa. Cuidado com ela, porque ela pode mudar o que as pessoas pensam."

Quando a confrontamos com as provas que tínhamos visto, ela ficou mais hostil, acusando-nos de também mentir.

"Você pode me ver como Katiuscia, você pode me ver como Kat, você pode me ver como Deus, você pode ver como o que você quiser ver. E você pode pegar o meu conselho ou não, é um problema, uma escolha toda sua", afirmou.

Ao se levantar para voltar para sua cela, ela sugeriu que logo descobriríamos se ela tinha poderes ou não. Depois apontou para mim e disse: "Eu não gostei dela".

Em 28 de junho, Kat foi condenada pelo juiz Marcelo Luzio Marques Araújo, da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, a oito anos de prisão por submeter Desirrê a tráfico humano e condições análogas à escravidão.

O juiz concluiu que Kat atraiu a jovem para os EUA para fins de exploração sexual.

Mais de 20 mulheres relataram terem sido enganadas ou exploradas por Kat - muitas das quais compartilharam suas experiências com a BBC.

Algumas ainda estão em tratamento psiquiátrico para se recuperarem do que dizem ter experimentado em suas relações com Kat.

O advogado de Kat, Rodrigo Menezes, disse à BBC que recorreu da condenação e insiste que ela é inocente.

Uma investigação baseada em denúncias de outras mulheres contra Kat está em curso no Brasil.

Ana acredita que ainda mais vítimas poderão se apresentar, assim que lerem sobre os crimes de Kat. Esta foi a primeira vez que Ana falou publicamente.

Ela diz que seu objetivo é fazer com que pessoas reconheçam que as ações de Kat constituem um crime grave e não um "drama de Instagram".

Nas páginas finais de seu livro, Desirrê também reflete sobre suas experiências.

"Ainda não estou totalmente recuperada, tive um ano desafiador. Fui explorada sexualmente, escravizada e presa. Espero que minha história sirva de alerta."

* Com reportagem de João Fellet, da BBC News Brasil em São Paulo

Este texto foi publicado originalmente aqui.