segunda-feira, 15 de julho de 2024

O discreto charme proletário da Vila Maria Zélia, FSP

 

SÃO PAULO

Quem nunca foi na Vila Maria Zélia deveria ir. Trata-se de um complexo residencial no bairro do Belenzinho, na zona leste de São Paulo, que serviu de residência nas primeiras décadas do século 20 para centenas de trabalhadores da fábrica da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, do empresário Jorge Street. O lugar remete ao passado proletário da região. Street, tido como um bom patrão, inaugurou a primeira creche para filhos de operários no país, mas também era a favor do trabalho para menores de 14 anos e contra a lei de férias, por exemplo.

Fundada em 1917, a Maria Zélia, projeto do arquiteto Paul Pedraurrieux, foi considerada um modelo de vila operária no seu tempo e era equipada com escolas para meninos e meninas, armazém, jardim de infância, farmácia, serviços médicos, campo de futebol, salão para bailes, sapataria, restaurante e a capela de São José. Ficava ao lado da fábrica e era como uma pequena cidade dentro de São Paulo onde os moradores encontravam tudo aquilo que precisavam.

Casa na Vila Maria Zélia
Vila operária mantém traçado original das ruas, mas maioria das construções está descaracterizada

O nome Maria Zélia foi uma homenagem de Street à sua filha, falecida de tuberculose em 1915, quando a vila estavam sendo construída. O lugar foi parcialmente preservado, mantém o mesmo traçado das ruas da época em que foi fundado e vários prédios de uso coletivo em ruínas. É o caso do armazém e das escolas. A grande maioria das casas foi descaracterizada mas resta aquele ar provinciano propiciado pelo isolamento e pela tranquilidade.

O momento da fundação da vila era de grande tensão trabalhista. Justamente em 1917 eclodiu a primeira greve geral no Brasil, deflagrada no Cotonifício Crespi, que ficava a 12 minutos da bicicleta da Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Os operários, em especial os anarquistas, criticavam o modelo de moradia proposto por Street e o viam como uma forma de dominação. O jornal proletário "A Plebe" chamava a Maria Zélia de "feudo". Dizia que os trabalhadores ficavam num bairro fechado e sob controle do patrão.

Prédio na Vila Maria Zélia
Prédios abandonados e tombados na Vila Maria Zélia pertencem ao INSS e estão ameaçados de ruir

Para morar na vila, além de pagar aluguel, descontado do salário, os trabalhadores precisavam seguir uma série de regulamentos moralizantes. O horário para circular pelas ruas ou receber visitantes era controlado e a permanência na casa de pessoas que não fossem da família, vetada. Havia um prédio só para solteiros. Os funcionários eram observados no seu tempo livre.

Por outro lado, a vida na vila proporcionava uma convivência intensa e constante entre os operários, o que permitia novas formas de socialização e o desenvolvimento de vínculos culturais e identitários nem sempre alinhados com os interesses do empresário.

Não eram todos os empregados da companhia que moravam na vila. A maioria dos trabalhadores de baixo escalão vivia em outros lugares. A Companhia Nacional de Tecidos de Juta tinha 2,5 mil funcionários, mas a Maria Zélia contava com apenas 198 casas de seis diferentes tipos. Elas eram distribuídas em função do tamanho das famílias, muitas com diversos membros, inclusive crianças, trabalhando na fábrica.

Casa preservada na Vila Maria Zélia
Raro imóvel na Maria Zélia que preserva características originais: vila tinha seis tipos de casas

O domínio de Street sobre a Vila Maria Zélia durou até 1924, quando, por conta de crises econômicas e dívidas, ele teve que vender a Companhia Nacional de Tecidos de Juta para a família Scarpa. Em 1934, a empresa foi à falência e ficou sob controle do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), atual INSS. Em 1969, as casas da vila começaram a ser vendidas aos seus inquilinos, por meio de financiamento do BNH (Banco Nacional de Habitação).

Tombada desde 1992 pelo Condephaat e pelo Conpresp por seus bens de interesse histórico, arquitetônico e social, a vila, apesar de sua rica tradição oferece hoje uma paisagem desoladora por causa dos edifícios coletivos em frangalhos. Mesmo assim ainda há um discreto charme e alguma agitação cultural por ali, proporcionada pela Associação Cultural Vila Maria Zélia, que costuma organizar festas em torno da capela, e pelo grupo XIX de Teatro, fundado em 2001, que converteu o lugar em um espaço de pesquisa, difusão e formação teatral.

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