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Por Lucas Neves/ da Folha Press
SÃO PAULO – Cento e cinquenta e dois anos perdurou o anonimato da mulher sem cabeça do célebre quadro “A Origem do Mundo”, de 1866, de Gustave Courbet.
Aquela cujas coxas, o ventre, o contorno de um seio e, sobretudo, o sexo causaram furor nas altas rodas da Paris oitocentista -mas também nas mais pedestres redes sociais do século 21, onde sua imagem foi censurada sete anos atrás – acaba de ganhar um rosto convincente.
É o de Constance Quéniaux, bailarina da Ópera de Paris mais tarde conhecida pela atuação na filantropia. A revelação está em “L’Origine du Monde, Vie du Modèle”, ensaio de Claude Schopp a ser lançado na França no começo deste mês.
O retrato que o autor esboça dela é o de uma artista mediana, vista com mais frequência em duos ou formações de grupo do que em solos consagradores. “Não era uma estrela, seu nome não saía nos jornais da época, não sobreviveu à história”, diz Schopp.
Segundo ele, Constance não hesitou em oferecer carinhos a senhores ilustrados em troca de afagos materiais que ajudassem a suprir lacunas deixadas pelo salário módico da Ópera.
Forçada a pendurar as sapatilhas depois de uma década por causa de dores e lesões, não arreda pé dos círculos da boemia. Compõe o “entourage” do compositor Esprit Auber e, pouco a pouco, envolve-se em ações de caridade, voltadas ora para crianças órfãs, ora para surdos e cegos.
No fim da vida, acumula bens. Tem um apartamento em Paris e uma casa no sofisticado balneário de Cabourg, na Normandia, onde ganha prêmios pelo projeto paisagístico de seu jardim particular. “Parece que seu passado de cortesã é totalmente esquecido. Constance vira uma figura respeitável”, afirma Schopp.
Uma cena um tanto distinta da de sua origem no mundo, na pequena Saint-Quentin, polo têxtil do norte da França em que foi criada sozinha por uma mãe iletrada, que trabalhava na usina de gás.
Até aqui, achava-se que a mulher retratada por Courbet na tela que virou um marco da pintura realista poderia ser a irlandesa Joanna Hiffernan, modelo recorrente do pintor à época da criação da obra, além de amante dele.
Mas seu cabelo ruivo não condizia com o marrom escuro dos pelos pubianos pintados pelo francês -só se ele tivesse deliberadamente mudado o tom para preservar a identidade de sua musa.
Outra hipótese era a de que se tratasse de Jeanne de Tourbey, amante do diplomata turco Khalil Bey, que encomendara a obra. Mas sua notoriedade nos salões burgueses da capital francesa tornava remota essa possibilidade.
Eis que, cerca de um ano e meio atrás, pesquisando a correspondência entre os escritores Alexandre Dumas filho e George Sand, pseudônimo de Amandine Dupin, Schopp encontrou uma menção cifrada à bailarina da Ópera.
“Não se pinta nem com o pincel mais delicado e sonoro a entrevista da senhorita Queniault”, escrevia o primeiro à segunda, grafando errado o sobrenome da bailarina.
Estranhando a possibilidade de uma modelo ter sido retratada pelo pintor durante uma entrevista, Schopp foi consultar a carta original, de 1871, guardada na Biblioteca Nacional da França.
Descobriu então que Dumas, à época brigado com Courbet por causa do apoio deste à Comuna de Paris (levante antimonarquista do proletariado) meses antes, aludira na verdade ao “interior” de Quéniaux.
“Ele pode ter sido informado da identidade da modelo por Khalil Bey, já que ambos eram grandes colecionados de arte que se visitavam periodicamente em suas respectivas galerias”, explica o ensaísta.
“Talvez ao fim de uma dessas visitas ele tenha levantado o pano verde que cobria o quadro [que só seria exposto ao público no fim do século 20] e confiado o segredo a Dumas.”
Mas, como a tela é anterior à contenda do artista com o autor de “A Dama das Camélias”, pode ser que o próprio Courbet tenha apontado sua musa, já que Dumas tinha em seu acervo uma tela anterior dele e gostava de se aproximar dos pintores cujas obras ele comprava.
São conjecturas. O que é cristalino é o rancor que Dumas a certa altura passou a nutrir em relação a Courbet, tratado por ele como um depravado, um monstro imoral.
Na época da carta, acrescenta Schopp, o escritor -que, na década de 1850, tornara-se célebre justamente por um romance ambientado no mundo da prostituição, ainda que tratada com verniz romântico- conduzia uma espécie de campanha contra o meretrício, visto por ele como epítome da decadência francesa. Para Dumas, “A Origem do Mundo” tomava ares de gênese de todo mal.
VOAR É PARA OS PÁSSAROS
“Caio
verticalmente e me transformo em notícia.”
(Carlos Drummond de Andrade,
“Morte no Avião”)
Para minha filha Carolina, que só entra no avião depois de
checar o nome do comandante
Domingo, pede cachimbo (quando criança, pensava que fosse “pé
de cachimbo” e ficava a imaginar como seria essa árvore prodigiosa, com seus
frutos dependurados: haveria uma árvore para cada tipo de cachimbo ou uma mesma
árvore daria as várias espécies de cachimbo?).
Domingo, véspera da sempre modorrenta segunda-feira!
Na falta de cachimbo, resolveu mergulhar de vez na nostalgia
e passou o dia a remexer gavetas, a reler papeluchos amarelecidos pelo tempo, a
folhear livros esquecidos, de repente encontrando entre as páginas uma pétala
seca.
Acabou nos velhos discos de vinil, com suas lindas capas,
encartes com fotos dos intérpretes e letras das músicas: Jovem Guarda, Beatles,
o quase menino Francisco Buarque de Holanda, o moço e belo Antonio Carlos
Jobim, os rapazes do conjunto MPB4, as barbas negras de João Bosco e Aldir
Blanc;
Entre eles, deparou com um disco ainda mais antigo, que havia
surrupiado do pai, verdadeira preciosidade. Capa amarela de papelão, no verso a
apresentação de Paulo Mendes Campos. Face A, Manuel Bandeira, Face B, Carlos
Drummond de Andrade, dizendo seus poemas. Sim, dizendo, e não declamando ou
recitando, que poesia é para ser dita na sua cadência própria, sem exageros e
histrionices em que muitas vezes incorrem atores que se põem a “encenar” o
poema, a “entrar” na personagem.
Colocou o disco na vitrola e em estado de graça passou a
ouvir os dois poetas.
Manuel Bandeira absolutamente à vontade, chegando a
cantarolar o refrão de uma canção infantil em “Evocação do Recife”, a
dar sua tossidela de tísico numa pausa de “Vou-me embora pra Pasárgada“.
Drummond sempre comedido, mas comovente e preciso em “Caso
do Vestido” e “Morte do Leiteiro”. Súbito, a voz aguda e tímida do
poeta principia outro poema, “Morte no Avião”. Os versos secos lhe caem
como um relâmpago, e se sente compelido a repetir duas ou três vezes o poema,
as palavras cortantes martelando seus ouvidos. No dia seguinte, viajaria de
avião para São Paulo, com aterrissagem em Congonhas.
Dormiu pouco, um sono agitado e intermitente, entremeado de
fragmentos de sonhos. Acordou de mau humor, mais do que costumava ficar toda
segunda-feira.
“Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.”
Pensou em adiar a viagem ou ir de carro, mas era impossível
fazer uma coisa ou outra de última hora. Além de vários compromissos
importantes em São Paulo ainda pela manhã, logo no começo da tarde faria
sustentação oral de uma causa difícil, perante o Tribunal.
“Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.”
Fez o check-in, tomou vários cafezinhos, vagueou inquieto
pelo aeroporto, sentou-se, levantou-se, foi ao banheiro.
“A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.”
Chamada para embarque imediato. Foi o último a entrar na fila
e lentamente caminhou como se fosse para o cadafalso (faz figa).
Ao pé da escada do avião, foi recebido pela tripulação
sorridente, com destaque para a figura galharda do comandante, cujo nome pôde
ler no crachá em letras que lhe pareceram garrafais: “COMANDANTE CAIO”.
Antonio Carlos Augusto Gama
Promotor de Justiça, aposentado