VOAR É PARA OS PÁSSAROS
“Caio
verticalmente e me transformo em notícia.”
(Carlos Drummond de Andrade,
“Morte no Avião”)
Para minha filha Carolina, que só entra no avião depois de
checar o nome do comandante
Domingo, pede cachimbo (quando criança, pensava que fosse “pé
de cachimbo” e ficava a imaginar como seria essa árvore prodigiosa, com seus
frutos dependurados: haveria uma árvore para cada tipo de cachimbo ou uma mesma
árvore daria as várias espécies de cachimbo?).
Domingo, véspera da sempre modorrenta segunda-feira!
Na falta de cachimbo, resolveu mergulhar de vez na nostalgia
e passou o dia a remexer gavetas, a reler papeluchos amarelecidos pelo tempo, a
folhear livros esquecidos, de repente encontrando entre as páginas uma pétala
seca.
Acabou nos velhos discos de vinil, com suas lindas capas,
encartes com fotos dos intérpretes e letras das músicas: Jovem Guarda, Beatles,
o quase menino Francisco Buarque de Holanda, o moço e belo Antonio Carlos
Jobim, os rapazes do conjunto MPB4, as barbas negras de João Bosco e Aldir
Blanc;
Entre eles, deparou com um disco ainda mais antigo, que havia
surrupiado do pai, verdadeira preciosidade. Capa amarela de papelão, no verso a
apresentação de Paulo Mendes Campos. Face A, Manuel Bandeira, Face B, Carlos
Drummond de Andrade, dizendo seus poemas. Sim, dizendo, e não declamando ou
recitando, que poesia é para ser dita na sua cadência própria, sem exageros e
histrionices em que muitas vezes incorrem atores que se põem a “encenar” o
poema, a “entrar” na personagem.
Colocou o disco na vitrola e em estado de graça passou a
ouvir os dois poetas.
Manuel Bandeira absolutamente à vontade, chegando a
cantarolar o refrão de uma canção infantil em “Evocação do Recife”, a
dar sua tossidela de tísico numa pausa de “Vou-me embora pra Pasárgada“.
Drummond sempre comedido, mas comovente e preciso em “Caso
do Vestido” e “Morte do Leiteiro”. Súbito, a voz aguda e tímida do
poeta principia outro poema, “Morte no Avião”. Os versos secos lhe caem
como um relâmpago, e se sente compelido a repetir duas ou três vezes o poema,
as palavras cortantes martelando seus ouvidos. No dia seguinte, viajaria de
avião para São Paulo, com aterrissagem em Congonhas.
Dormiu pouco, um sono agitado e intermitente, entremeado de
fragmentos de sonhos. Acordou de mau humor, mais do que costumava ficar toda
segunda-feira.
“Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.”
Pensou em adiar a viagem ou ir de carro, mas era impossível
fazer uma coisa ou outra de última hora. Além de vários compromissos
importantes em São Paulo ainda pela manhã, logo no começo da tarde faria
sustentação oral de uma causa difícil, perante o Tribunal.
“Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.”
Fez o check-in, tomou vários cafezinhos, vagueou inquieto
pelo aeroporto, sentou-se, levantou-se, foi ao banheiro.
“A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.”
Chamada para embarque imediato. Foi o último a entrar na fila
e lentamente caminhou como se fosse para o cadafalso (faz figa).
Ao pé da escada do avião, foi recebido pela tripulação
sorridente, com destaque para a figura galharda do comandante, cujo nome pôde
ler no crachá em letras que lhe pareceram garrafais: “COMANDANTE CAIO”.
Antonio Carlos Augusto Gama
Promotor de Justiça, aposentado
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