quinta-feira, 11 de julho de 2024

VOAR É PARA OS PÁSSAROS, Antonio Carlos Augusto Gama, do site APMP

 

VOAR É PARA OS PÁSSAROS

 

 

“Caio verticalmente e me transformo em notícia.”

(Carlos Drummond de Andrade, “Morte no Avião”)

 

 

Para minha filha Carolina, que só entra no avião depois de checar o nome do comandante

 

 

Domingo, pede cachimbo (quando criança, pensava que fosse “pé de cachimbo” e ficava a imaginar como seria essa árvore prodigiosa, com seus frutos dependurados: haveria uma árvore para cada tipo de cachimbo ou uma mesma árvore daria as várias espécies de cachimbo?).

 

Domingo, véspera da sempre modorrenta segunda-feira!

 

Na falta de cachimbo, resolveu mergulhar de vez na nostalgia e passou o dia a remexer gavetas, a reler papeluchos amarelecidos pelo tempo, a folhear livros esquecidos, de repente encontrando entre as páginas uma pétala seca.

 

Acabou nos velhos discos de vinil, com suas lindas capas, encartes com fotos dos intérpretes e letras das músicas: Jovem Guarda, Beatles, o quase menino Francisco Buarque de Holanda, o moço e belo Antonio Carlos Jobim, os rapazes do conjunto MPB4, as barbas negras de João Bosco e Aldir Blanc;

 

Entre eles, deparou com um disco ainda mais antigo, que havia surrupiado do pai, verdadeira preciosidade. Capa amarela de papelão, no verso a apresentação de Paulo Mendes Campos. Face A, Manuel Bandeira, Face B, Carlos Drummond de Andrade, dizendo seus poemas. Sim, dizendo, e não declamando ou recitando, que poesia é para ser dita na sua cadência própria, sem exageros e histrionices em que muitas vezes incorrem atores que se põem a “encenar” o poema, a “entrar” na personagem.

 

Colocou o disco na vitrola e em estado de graça passou a ouvir os dois poetas.

 

Manuel Bandeira absolutamente à vontade, chegando a cantarolar o refrão de uma canção infantil em “Evocação do Recife”, a dar sua tossidela de tísico numa pausa de “Vou-me embora pra Pasárgada“.

 

Drummond sempre comedido, mas comovente e preciso em “Caso do Vestido” e “Morte do Leiteiro”. Súbito, a voz aguda e tímida do poeta principia outro poema, “Morte no Avião”. Os versos secos lhe caem como um relâmpago, e se sente compelido a repetir duas ou três vezes o poema, as palavras cortantes martelando seus ouvidos. No dia seguinte, viajaria de avião para São Paulo, com aterrissagem em Congonhas.

 

Dormiu pouco, um sono agitado e intermitente, entremeado de fragmentos de sonhos. Acordou de mau humor, mais do que costumava ficar toda segunda-feira.

 

“Acordo para a morte.

Barbeio-me, visto-me, calço-me.

É meu último dia: um dia

cortado de nenhum pressentimento.

Tudo funciona como sempre.

Saio para a rua. Vou morrer.”

 

Pensou em adiar a viagem ou ir de carro, mas era impossível fazer uma coisa ou outra de última hora. Além de vários compromissos importantes em São Paulo ainda pela manhã, logo no começo da tarde faria sustentação oral de uma causa difícil, perante o Tribunal.

 

“Pela última vez miro a cidade.

Ainda posso desistir, adiar a morte,

não tomar esse carro. Não seguir para.

Posso voltar, dizer: amigos,

esqueci um papel, não há viagem,

ir ao cassino, ler um livro.”

 

Fez o check-in, tomou vários cafezinhos, vagueou inquieto pelo aeroporto, sentou-se, levantou-se, foi ao banheiro.

 

 

“A morte dispôs poltronas para o conforto

da espera. Aqui se encontram

os que vão morrer e não sabem.

Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,

pequenos serviços cercam de delicadeza

nossos corpos amarrados.”

 

Chamada para embarque imediato. Foi o último a entrar na fila e lentamente caminhou como se fosse para o cadafalso (faz figa).

 

Ao pé da escada do avião, foi recebido pela tripulação sorridente, com destaque para a figura galharda do comandante, cujo nome pôde ler no crachá em letras que lhe pareceram garrafais: “COMANDANTE CAIO”.

 

 

Antonio Carlos Augusto Gama

Promotor de Justiça, aposentado

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