terça-feira, 18 de junho de 2024

Brasil tem escassez de dados sobre reciclagem e acumula pontos cegos, FSP

 

SÃO PAULO

As três esferas de governo têm dificuldade em apontar com algum grau de precisão o quanto de resíduos de fato é reaproveitado hoje no país. Menos clareza ainda há em relação às taxas de reciclagem de materiais como o plástico, cuja poluição preocupa ambientalistas e está às vésperas de ser limitada por um tratado global.

Num momento em que o debate sobre resíduos sólidos cresce em todo mundo —e quase 14 anos após a criação de uma política nacional sobre o tema— o Brasil convive com escassez de informações e profusão de pontos cegos.

Os sistemas oficiais do governo até indicam alguns números sobre o assunto, mas na avaliação de especialistas os dados estão distantes da realidade, pois são autodeclaratórios e não passam por verificação.

Latinhas prontas para reciclagem em planta da Facipel, empresa que pertence ao grupo Multilixo - Bruno Santos/Bruno Santos -14.mar.24/Folhapress

"A gente não sabe a real reciclagem no Brasil. Essa é a verdade", afirma Fernando Bernardes, diretor de operações da Central de Custódia, empresa que faz certificação de resultados de logística reversa.

Folha solicitou ao Ministério do Meio Ambiente dados sobre volume geral de reciclagem e segmentação por tipo de material. A pasta disse que enviaria as informações, mas dez dias após o pedido parou de responder às tentativas de comunicação da reportagem feitas por email, WhatsApp e telefone. Questionada sobre a escassez de dados apontada por especialistas, a assessoria do ministério não comentou.

O Sinir (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos) relata que o país gera em torno de 84 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano. Desse total, cerca de 3% (1,6 milhão de toneladas) seriam reciclados.

Os resultados são baseados no que os próprios municípios reportam para o governo, tendo em vista o que eles consideram que está sendo reciclado.

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"Esse número está muito distante da realidade. Os municípios têm acesso aos dados das cooperativas locais, mas toda cidade também tem um ferro velho, um sucateiro e outros atores que estão pegando materiais na rua. Isso não está rastreado em lugar nenhum", diz Bernardes.

Segundo ele, os dados de reaproveitamento de materiais são escassos e a consequência disso é a dificuldade em enxergar o cenário por completo.

"A maior parte da reciclagem está no setor privado, que emite notas fiscais, mas isso não é verificado, não é checado por ninguém", acrescenta.

Fabricio Soler, sócio da S2F Partners, consultoria especializada em gestão de resíduos e economia circular, também menciona a dificuldade em encontrar informações sobre o assunto.

Para ele, a carência de sistemas que consolidem os resultados das ações de coleta, reciclagem, triagem e disposição final ainda é um grande desafio no Brasil.

Mas, se os dados gerais já são considerados problemáticos, a lacuna é ainda maior quando se trata do detalhamento por tipo de resíduo, ou seja, o quanto de plástico, papel, metal e de outros materiais são reciclados hoje no país.

Atualmente, cada entidade setorial produz seus próprios dados. Associações que representam as indústrias elaboram relatórios periódicos indicando o quanto de material elas reaproveitam anualmente.

"Mas não existe nenhum dado independente, de terceira parte, que consolide todas as informações", explica Soler. "É lógico que essas entidades geram evidências do que elas fazem, isso tem seu valor e ajuda a orientar políticas públicas. Mas seria importante ter uma ferramenta de uma terceira parte para confirmar que aqueles são mesmo os índices de reciclagem", acrescenta.

Segundo ele, uma possível solução para o apagão de dados que o Brasil vive é expandir o que foi feito com o setor de embalagens.

A PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos) determinou que empresas garantam a reciclagem de um percentual das embalagens usadas. Para este ano, a meta é de 30%.

Isso significa que se um fabricante, importador, distribuidor ou comerciante pôs dez produtos em embalagens no mercado, ele precisa trazer três para o ciclo produtivo de novo.

Em 2022, o governo obrigou que esse processo fosse conferido por uma entidade independente, chamada de verificador de resultados. A certificação é feita por meio das notas fiscais eletrônicas, assegurando a veracidade dos dados e garantindo que a contagem não seja seja feita duas vezes por empresas diferentes.

Em função dessa obrigação, os especialistas dizem que o setor de embalagens é hoje o que dispõe de mais dados confiáveis e rastreáveis sobre reciclagem no país.

A Central de Custódia é a única empresa autorizada pelo Ministério do Meio Ambiente para fazer essa verificação. O governo está fazendo novas homologações, mas hoje a entidade concentra mais de 90% do mercado.

Bernardes diz que a Central tem um trabalho em andamento com a indústria do plástico e do vidro para verificar dados de reaproveitamento desses setores. Para ele, o governo federal precisa expandir as obrigações para outros setores e criar formas de integrar as informações que hoje estão espalhadas.

"A estratégia do governo que eu acho assertiva é fazer decretos por tipos de materiais, exigindo o índice de reciclagem da indústria. Com esses índices verificados e reportados dentro da plataforma do Sinir, nós vamos conseguir ter a integralidade do que está sendo reciclado no país", diz.

O que as zebras podem ensinar sobre o comércio internacional, FT FSP

 

Tim Harford
FINANCIAL TIMES

Não é sempre que é possível encaixar zebras em um texto de tarifas comerciais. Mas diante de uma guerra comercial sobre carros elétricos —e com eleições nos EUA, economia chinesa e crise do clima em jogo— vale a tentativa.

O governo de Joe Biden impôs tarifas pesadas sobre produtos chineses, especialmente veículos elétricos. A médio prazo, o efeito será bloquear a entrada de carros elétricos baratos no mercado americano, o que é ruim para o planeta, ruim para os consumidores e ótimo para qualquer pessoa que queira fabricá-los ou vendê-los dentro do país.

Mas e a longo prazo? O jogo é tentar mudar a estrutura da economia dos EUA em direção à fabricação de tecnologias verdes como painéis solares, baterias e carros elétricos. Isso pode funcionar? É aí que entram as zebras.

Zebras encostando suas cabeças, no zoológico de Londres - DANIEL LEAL/Daniel Leal - 3.jan.2024/AFP

Num modelo simplificado de savana, a grama cresce sob o sol. As zebras comem a grama. Os leões comem as zebras. E como nenhum modelo não está completo sem termos técnicos, vale introduzir um: o nível trófico.

O nível trófico do sol é 0. A grama tem um nível trófico de 1, as zebras, 2, e os leões têm um nível trófico de 3.

Claro que tudo fica mais complicado. Os javalis comem plantas, mas podem comer uma zebra morta ou até um leão morto. Então um javali pode ter um nível trófico de, digamos, 2,1.

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Tudo isso é útil para pensar durante a modelagem da ecologia da savana. Mas também útil para pensar na estrutura de uma economia.

Dois cientistas da complexidade, James McNerney e Doyne Farmer, sugeriram procurar analogias com níveis tróficos em economias. Não é que uma economia tenha uma cadeia alimentar ou um predador dominante, como tal. Mas as economias têm muitos setores interdependentes, e a matemática dos níveis tróficos oferece uma maneira promissora de analisá-los.

Em um cenário econômico, o nível trófico 0 será definido como o dos indivíduos. Uma indústria de ferramentas que usa apenas mão de obra humana tem um nível trófico de 1. Uma indústria de engrenagens composta metade por trabalhadores e metade por ferramentas tem um nível trófico de 1,5, e assim por diante.

Quanto mais elos houver na cadeia de suprimentos de uma indústria, maior será seu nível trófico. Isso significa que setores com alto nível trófico são mais sofisticados? Não mais do que os leões são mais sofisticados do que as zebras. Mas o nível trófico importa.

McNerney, Farmer e coautores usaram dados do World Input-Output Database para calcular os níveis tróficos de diferentes setores nos EUA, China e outros países. Eles descobriram que a economia chinesa está cheia de setores com um nível trófico acima de 4, enquanto o nível trófico mais alto de um grande setor dos EUA é a fabricação de alimentos, um pouco acima de 3,5.

Grandes setores dos EUA, incluindo saúde, varejo e defesa, têm um baixo nível trófico, de cerca de 2.

Os níveis tróficos não são fixos. A agricultura nos EUA é altamente mecanizada e tem um nível trófico acima de 3, enquanto a agricultura chinesa é uma atividade intensiva em mão de obra com um nível trófico abaixo de 2,5.

Os parlamentares americanos dizem que querem defender os empregos na indústria manufatureira da concorrência chinesa. Existem algumas razões plausíveis de segurança e algumas implausíveis, mas isso também é uma tentativa de elevar o nível trófico da economia dos EUA.

Fábrica da Tesla em Austrin, Texas - SUZANNE CORDEIRO/Suzanne Cordeiro/AFP

Isso é desejável? Apesar dos baixos níveis tróficos, o cidadão típico dos EUA desfruta de um padrão de vida muito mais alto do que o da China.

Mas, como Farmer explica em seu livro recente "Making Sense of Chaos", há uma vantagem em setores de alto nível trófico. Elas tendem a se tornar mais eficientes em menos tempo.

A razão é simples, quase mecânica: um setor sem fornecedores tem apenas uma possível fonte de melhoria tecnológica, ela mesma.

Um setor com uma cadeia de suprimentos profunda se beneficia quando qualquer empresa nessa cadeia melhora. McNerney descobriu que, para o setor típico, cerca de dois terços das melhorias tecnológicas vêm dos fornecedores e apenas um terço é feito internamente.

Essa teoria simples traz algumas suposições que podem estar erradas, mas quando McNerney, Farmer e coautores analisaram os dados, descobriram que a evidência estava de acordo com a teoria.

Economias com níveis tróficos mais altos são mais inovadoras e tendem a crescer mais rapidamente. A teoria também explica a crença vaga, mas amplamente aceita, de que há algo especial na manufatura.

O que é especial é que a manufatura frequentemente tem um alto nível trófico.

Muitos eleitores aplaudirão as novas tarifas dos EUA sobre a China. Deveriam? Farmer diz que "uma política industrial que apoia setores com longas cadeias de suprimentos, elevando o nível trófico da economia, deve resultar em um crescimento mais rápido do PIB e aumentos mais fortes na produtividade".

Isso deixa em aberto a questão de se as tarifas são a maneira certa de nutrir tais setores.

Décadas de retórica sobre proteger "indústrias nascentes" tentaram obscurecer o fato de que as tarifas geralmente protegem indústrias antigas e em declínio, em vez daquelas jovens e em crescimento.

Essas novas tarifas, por outro lado, estão protegendo setores de mercado nascentes e em rápido crescimento. Então talvez, desta vez, as coisas sejam diferentes.

Um livro corajoso sobre meandros de luz e sombra da ayahuasca, Marcelo Leite, FSP

 Boas surpresas sobre coisas brasileiras às vezes surgem em inglês. Foi assim, anos atrás, com o livro "Samba", de Alma Guillermoprieto, e se repete agora com "Trippy", de Ernesto Londoño.

O jornalista de família colombiana educado nos EUA foi correspondente do jornal The New York Times no Brasil. Se alguma casa editora nacional se dispuser a publicar a obra, poderia traduzir o título como "Viajandão", embora nem o original inglês nem essa versão em português façam justiça à gravidade do livro.

O subtítulo capta melhor a atmosfera do texto: "O perigo e a promessa de psicodélicos medicinais". Uma frase genérica, que tem o defeito de tirar o foco da ayahuasca, epicentro do volume, chamando porém a atenção para aspectos tanto sombrios quanto iluminadores do chá amazônico alterador da consciência.

Detalhe de gomos de cipó grosso
Variedade tucunacá do cipó-mariri (Banisteriopsis caapi), usado para fazer ayahuasca - Divulgação/Inpa/UDV

Não conte com informação científica detalhada sobre pesquisas clínicas recentes que atestam o potencial terapêutico de psicodélicos contra transtornos psíquicos, como MDMA para estresse pós-traumático ou psilocibina para depressão. O que aparece vem na medida certa, para dar o contexto necessário.

O forte da narrativa está nas experiências vividas pelo autor durante e depois das cerimônias com a bebida, também conhecida como daime. Londoño participou de várias, no Brasil, na Costa Rica, no Peru, nos EUA.

A sinceridade é notável. Gay e depressivo com fantasias suicidas, o jornalista descreve as dificuldades de relacionamento e adaptação que enfrentou no Rio de Janeiro, depois de bem-sucedida carreira como correspondente de guerra e editorialista.

As primeiras experiências com ayahuasca o lançam numa reavaliação profunda da própria personalidade, da biografia e da história familiar. Para não entregar spoiler, cabe apenas dizer que há no epílogo um final feliz, após caminho árduo pontuado por testemunhos de cenas apavorantes.

Nos centros e rituais que visitou, Londoño presenciou e desencavou histórias que bem ilustram os riscos de experiências psicodélicas que deveriam ser terapêuticas e resultam abusivas. Assédio sexual, exploração econômica, manipulação espiritual e até maus-tratos físicos abundam nas páginas mais escuras.

Não falta luz, contudo. Lutando por vezes com a índole cética e distanciadora do jornalismo de qualidade, o repórter consegue render-se ao poder das plantas da ayahuasca, chacrona e mariri, relevando o misticismo que costuma acompanhar as cerimônias, para não falar de muitas mistificações neoxamânicas.

É talvez o efeito colateral mais benfazejo de psicodélicos: uma enorme boa vontade e inesgotável tolerância com o que é humano, mesmo nas manifestações mais patéticas. Sob seu efeito, mesmo o mais cartesiano e ateu dos jornalistas se torna menos cego para a insuficiência das certezas e para a própria vulnerabilidade.

Nesta altura o leitor já irá perguntar-se se o colunista não está a falar mais de si do que de Londoño. É provável que outros psiconautas experimentem a mesma identificação reconfortante na leitura. E é desejável que ela também assalte aqueles que poderiam curar-se com terapias psicodélicas já no horizonte clínico.

O chamado renascimento psicodélico para a medicina ganhou atenção pública em 2018 com o best-seller "Como Mudar sua Mente", de Michael Pollan. Que "Trippy", de Ernesto Londoño, possa fazer algo semelhante em favor da tecnologia milenar dos indígenas da Amazônia.