As três esferas de governo têm dificuldade em apontar com algum grau de precisão o quanto de resíduos de fato é reaproveitado hoje no país. Menos clareza ainda há em relação às taxas de reciclagem de materiais como o plástico, cuja poluição preocupa ambientalistas e está às vésperas de ser limitada por um tratado global.
Num momento em que o debate sobre resíduos sólidos cresce em todo mundo —e quase 14 anos após a criação de uma política nacional sobre o tema— o Brasil convive com escassez de informações e profusão de pontos cegos.
Os sistemas oficiais do governo até indicam alguns números sobre o assunto, mas na avaliação de especialistas os dados estão distantes da realidade, pois são autodeclaratórios e não passam por verificação.
"A gente não sabe a real reciclagem no Brasil. Essa é a verdade", afirma Fernando Bernardes, diretor de operações da Central de Custódia, empresa que faz certificação de resultados de logística reversa.
A Folha solicitou ao Ministério do Meio Ambiente dados sobre volume geral de reciclagem e segmentação por tipo de material. A pasta disse que enviaria as informações, mas dez dias após o pedido parou de responder às tentativas de comunicação da reportagem feitas por email, WhatsApp e telefone. Questionada sobre a escassez de dados apontada por especialistas, a assessoria do ministério não comentou.
O Sinir (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos) relata que o país gera em torno de 84 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano. Desse total, cerca de 3% (1,6 milhão de toneladas) seriam reciclados.
Os resultados são baseados no que os próprios municípios reportam para o governo, tendo em vista o que eles consideram que está sendo reciclado.
"Esse número está muito distante da realidade. Os municípios têm acesso aos dados das cooperativas locais, mas toda cidade também tem um ferro velho, um sucateiro e outros atores que estão pegando materiais na rua. Isso não está rastreado em lugar nenhum", diz Bernardes.
Segundo ele, os dados de reaproveitamento de materiais são escassos e a consequência disso é a dificuldade em enxergar o cenário por completo.
"A maior parte da reciclagem está no setor privado, que emite notas fiscais, mas isso não é verificado, não é checado por ninguém", acrescenta.
Fabricio Soler, sócio da S2F Partners, consultoria especializada em gestão de resíduos e economia circular, também menciona a dificuldade em encontrar informações sobre o assunto.
Para ele, a carência de sistemas que consolidem os resultados das ações de coleta, reciclagem, triagem e disposição final ainda é um grande desafio no Brasil.
Mas, se os dados gerais já são considerados problemáticos, a lacuna é ainda maior quando se trata do detalhamento por tipo de resíduo, ou seja, o quanto de plástico, papel, metal e de outros materiais são reciclados hoje no país.
Atualmente, cada entidade setorial produz seus próprios dados. Associações que representam as indústrias elaboram relatórios periódicos indicando o quanto de material elas reaproveitam anualmente.
"Mas não existe nenhum dado independente, de terceira parte, que consolide todas as informações", explica Soler. "É lógico que essas entidades geram evidências do que elas fazem, isso tem seu valor e ajuda a orientar políticas públicas. Mas seria importante ter uma ferramenta de uma terceira parte para confirmar que aqueles são mesmo os índices de reciclagem", acrescenta.
Segundo ele, uma possível solução para o apagão de dados que o Brasil vive é expandir o que foi feito com o setor de embalagens.
A PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos) determinou que empresas garantam a reciclagem de um percentual das embalagens usadas. Para este ano, a meta é de 30%.
Isso significa que se um fabricante, importador, distribuidor ou comerciante pôs dez produtos em embalagens no mercado, ele precisa trazer três para o ciclo produtivo de novo.
Em 2022, o governo obrigou que esse processo fosse conferido por uma entidade independente, chamada de verificador de resultados. A certificação é feita por meio das notas fiscais eletrônicas, assegurando a veracidade dos dados e garantindo que a contagem não seja seja feita duas vezes por empresas diferentes.
Em função dessa obrigação, os especialistas dizem que o setor de embalagens é hoje o que dispõe de mais dados confiáveis e rastreáveis sobre reciclagem no país.
A Central de Custódia é a única empresa autorizada pelo Ministério do Meio Ambiente para fazer essa verificação. O governo está fazendo novas homologações, mas hoje a entidade concentra mais de 90% do mercado.
Bernardes diz que a Central tem um trabalho em andamento com a indústria do plástico e do vidro para verificar dados de reaproveitamento desses setores. Para ele, o governo federal precisa expandir as obrigações para outros setores e criar formas de integrar as informações que hoje estão espalhadas.
"A estratégia do governo que eu acho assertiva é fazer decretos por tipos de materiais, exigindo o índice de reciclagem da indústria. Com esses índices verificados e reportados dentro da plataforma do Sinir, nós vamos conseguir ter a integralidade do que está sendo reciclado no país", diz.
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