domingo, 10 de dezembro de 2023

Muniz Sodré - A cidade por um fio, FSP

 

Semanas atrás, em plena luz do sol que cozinhava a cidade como panela de pressão, um homem dependurava-se na fiação elétrica da avenida de um bairro carioca. Nenhuma exibição atlética, mas tentativa de roubo. Insólita foi a hora, a prática é comum: neste ano, já se roubaram mais de mil quilômetros de fios. Do mesmo modo, sumiram centenas de toneladas de cabos subterrâneos, artefatos de bronze de estátuas e edifícios, luminárias e caixas de lixo, que, segundo consta, são cortadas e refeitas como pás de limpeza.

Para os mais afeitos a explicações estruturais, o que acorre à primeira vista é a desigualdade socioeconômica. Há bastante tempo, durante o comício das Diretas Já, chamou a atenção de um dos organizadores a presença de um homem de aparência humilde à frente dos assistentes. Puxou conversa e perguntou-lhe o que achava da manifestação. A resposta, inequívoca: ele estava interessado apenas no que poderia sobrar das madeiras do palanque.

Isso se explicaria por desigualdade de cidadania, mas fica aquém do fenômeno das depredações. De fato, na Cidade do México, uma das maiores metrópoles mundiais, onde igualdade não é apregoada como virtude, não se depreda nem se picha. Existe a hipótese de que o local se orgulha de seu patrimônio. Nada que se correlacione com a violência extrema dos cartéis nem com o tráfico humano. Mas os equipamentos urbanos parecem escapar.

Uma cidade pode ser apreendida no imaginário coletivo, ao modo do que foi na Antiguidade, como um corpo humano, com cabeça, tronco e membros. O sentimento gerado por analogias dessa ordem corresponde a pulsões variadas, inclusive à de fome, como já especulou Carl Jung. No limite da obtenção de recursos pelos desfavorecidos, a cidade se destrói, autodevorando-se.

Operários recolocam par de óculos na estátua de Carlos Drummond de Andrade, que já foi furtado cinco vezes em dez meses, no Rio de Janeiro (RJ)
Operários recolocam par de óculos na estátua de Carlos Drummond de Andrade, que já foi furtado cinco vezes em dez meses, no Rio de Janeiro (RJ) - Rafael Andrade - 25.ago.2008/Folhapress

Isso pode também corresponder aos efeitos de uma guerra civil molecular travada à revelia dos poderes constituídos. A metrópole carioca é laboratório de gestões brutalistas em territórios predados por formas novas de colonialismo interno. O corpo da urbe sofre, por um lado, de amputações espaciais por empresas vorazes. Por outro, de regimes ditatoriais nos enclaves controlados por facções criminosas. Enorme é o sofrimento moral, sobrevoado por abutres religiosos.

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Na prática, para o cidadão que das Diretas Já aspirava só à madeira do palanque, a militarização não acabou, as armas dos tiranos apenas mudaram de mãos. E o capital intensificou a depredação, reservando às elites os experimentos de cidade inteligente. Em certos estados, o furor extrativista parece abstrato, menos no que deixa: lama, mortos, crateras. No Rio, é mesmo concreto o desamparo físico e moral. Mas a ironia objetiva dos estratos subalternos, ao modo de cupins demolidores, é a devoração do corpo funcional da cidade.


Hélio Schwartsman O show da ciência, fsp (DEFINITIVO)

 Na pandemia, a ciência deu um show. A doença surgiu na China no finalzinho de 2019. Em poucas semanas, o vírus Sars-CoV-2 já havia sido identificado. Em março de 2020, vieram os primeiros kits para a detecção de anticorpos, possibilitando a testagem. Em dezembro, já havia países vacinando suas populações. Nunca tantos imunizantes foram desenvolvidos tão rapidamente. E funcionaram.

As coisas deram certo porque cientistas, laboratórios e governos centraram esforços em atingir objetivos bem definidos, sem poupar recursos. Essa, porém, não é ordem natural das coisas. No arroz com feijão da medicina, a ciência não se sai tão bem. E isso é um eufemismo. O estatuto epistemológico de grande parte das intervenções médicas que realizamos é precário.

Visualização das ondas de colaboração, com base em 60 anos de dados de 20 milhões de artigos em 3.562 cidades. As luzes brilhantes indicam as cidades em que houve a 'fusão' de ideias, impulsionadas por equipes nesses locais. As conexões remotas espalham essas iluminações, porém muitas vezes não geram o mesmo brilho
Visualização das ondas de colaboração, com base em 60 anos de dados de 20 milhões de artigos em 3.562 cidades. As luzes brilhantes indicam as cidades em que houve a 'fusão' de ideias, impulsionadas por equipes nesses locais. As conexões remotas espalham essas iluminações, porém muitas vezes não geram o mesmo brilho - Yiling Lin

No ano passado, Jeremy Howick e colaboradores publicaram um artigo que deveria nos assustar. Eles avaliaram a qualidade dos dados utilizados nas revisões sistemáticas Cochrane, que são consideradas o que de melhor existe para orientar profissionais em busca da medicina baseada em evidências, e chegaram a uma conclusão sombria. Nove de cada dez intervenções médicas estudadas pela Cochrane não têm apoio em evidências de alta qualidade e, para piorar, malefícios que elas causam tendem a ser subnotificados.

Isso, acredito, tem muito a ver com a cultura do "publish or perish" (publique ou pereça) que tomou conta da academia. O objetivo primário de cada pesquisador é publicar o artigo que fará sua carreira avançar, não produzir boa ciência. Nosso sistema, em vez de concentrar esforços para resolver dúvidas pertinentes com evidências sólidas, os dispersa num grande número de pesquisas sem tanta importância. São montanhas de pesquisadores parindo pequenos ratos.

Precisaríamos encontrar uma forma de conciliar os interesses de pesquisadores que precisam mostrar produção com a necessidade de tornar mais sólidos nossos conhecimentos médicos.

O QUE A FOLHA PENSA Saliente e impopular

 Vale para os magistrados e as cortes a máxima esportiva de que bom árbitro é aquele cuja atuação mal se nota ao final da partida. O Supremo Tribunal Federal tem sido um juiz saliente no entrechoque institucional brasileiro. Sua mão pesada não passa despercebida.

Em boa medida não poderia ser de outro modo, dado o nível elevado de truculência e exigência do jogo e dos jogadores. O Supremo foi colocado pela Constituição, e por incidentes subsequentes, no vértice da agenda nacional.

Além de praticar a arbitragem de temas constitucionais clássicos, sua vocação, o tribunal atua como uma espécie de quarta instância de ações comuns, foro de juízo penal de altas autoridades, desaguadouro de petições de derrotados no conflito parlamentar e central de habeas corpus.

De 2019 a 2022 os ministros viram-se confrontados por um presidente da República autoritário, situação agravada na pandemia de coronavírus. Seguidores do líder bonapartista vandalizaram as sedes dos três Poderes no início deste ano. Tudo isso justificou respostas firmes da corte.

Uma parcela considerável do estrelismo do STF, contudo, é inadequada porque se deve ao modo de agir de seus próprios integrantes. Há desmesura na concentração de poder individual e no hábito de tagarelar fora dos autos e de imiscuir-se em lobbies da política.

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Penas duríssimas contra peixes pequenos da depredação de Brasília contrastam com a flexibilização das punições à corrupção das elites. Relativizam-se direitos de expressão e imprensa e invadem-se atribuições do Legislativo. A jurisprudência dá reviravoltas.

A saliência do Supremo em período de normalidade institucional não é bem vista pela maioria da população. A diferença entre quem considera ruim ou péssima (38%) a atuação do tribunal e os que a julgam ótima ou boa (27%) subiu 11 pontos percentuais desde dezembro de 2022.

A pesquisa, realizada pelo Datafolha entre brasileiros de 16 anos ou mais (aptos a votar, portanto), também mostra que a polarização político-ideológica que dividiu o país nas últimas eleições repete-se na avaliação da corte, muito mais apreciada hoje por lulistas do que por bolsonaristas.

Tornar-se popular no sentido perseguido pelos mandatários jamais deveria ser o objetivo de uma organização que distribui justiça. A aprovação desejável da corte precisa derivar da percepção de que atua com equidistância, proporcionalidade e estabilidade.

Privilegiar a autocontenção, a discrição, a colegialidade e a segurança jurídica ajudaria a melhorar a imagem do Supremo, bem como a sua efetividade institucional.

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