Semanas atrás, em plena luz do sol que cozinhava a cidade como panela de pressão, um homem dependurava-se na fiação elétrica da avenida de um bairro carioca. Nenhuma exibição atlética, mas tentativa de roubo. Insólita foi a hora, a prática é comum: neste ano, já se roubaram mais de mil quilômetros de fios. Do mesmo modo, sumiram centenas de toneladas de cabos subterrâneos, artefatos de bronze de estátuas e edifícios, luminárias e caixas de lixo, que, segundo consta, são cortadas e refeitas como pás de limpeza.
Para os mais afeitos a explicações estruturais, o que acorre à primeira vista é a desigualdade socioeconômica. Há bastante tempo, durante o comício das Diretas Já, chamou a atenção de um dos organizadores a presença de um homem de aparência humilde à frente dos assistentes. Puxou conversa e perguntou-lhe o que achava da manifestação. A resposta, inequívoca: ele estava interessado apenas no que poderia sobrar das madeiras do palanque.
Isso se explicaria por desigualdade de cidadania, mas fica aquém do fenômeno das depredações. De fato, na Cidade do México, uma das maiores metrópoles mundiais, onde igualdade não é apregoada como virtude, não se depreda nem se picha. Existe a hipótese de que o local se orgulha de seu patrimônio. Nada que se correlacione com a violência extrema dos cartéis nem com o tráfico humano. Mas os equipamentos urbanos parecem escapar.
Uma cidade pode ser apreendida no imaginário coletivo, ao modo do que foi na Antiguidade, como um corpo humano, com cabeça, tronco e membros. O sentimento gerado por analogias dessa ordem corresponde a pulsões variadas, inclusive à de fome, como já especulou Carl Jung. No limite da obtenção de recursos pelos desfavorecidos, a cidade se destrói, autodevorando-se.
Isso pode também corresponder aos efeitos de uma guerra civil molecular travada à revelia dos poderes constituídos. A metrópole carioca é laboratório de gestões brutalistas em territórios predados por formas novas de colonialismo interno. O corpo da urbe sofre, por um lado, de amputações espaciais por empresas vorazes. Por outro, de regimes ditatoriais nos enclaves controlados por facções criminosas. Enorme é o sofrimento moral, sobrevoado por abutres religiosos.
Na prática, para o cidadão que das Diretas Já aspirava só à madeira do palanque, a militarização não acabou, as armas dos tiranos apenas mudaram de mãos. E o capital intensificou a depredação, reservando às elites os experimentos de cidade inteligente. Em certos estados, o furor extrativista parece abstrato, menos no que deixa: lama, mortos, crateras. No Rio, é mesmo concreto o desamparo físico e moral. Mas a ironia objetiva dos estratos subalternos, ao modo de cupins demolidores, é a devoração do corpo funcional da cidade.
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