sábado, 21 de novembro de 2020

Alvaro Costa e Silva A morte e a morte do Villarino, FSP

 Havia um painel de valor inestimável contendo desenhos e autógrafos na parede do Villarino. Nos anos 50, a nata boêmia da cidade se reunia em suas mesas: gente como Antônio Maria, Dorival Caymmi, Aracy de Almeida, o médico Eustáquio Duarte, inventor do “gabarito fosfórico” adotado na casa: a dose de uísque tinha de chegar à altura da caixa de fósforos Beija-Flor, na vertical. Valia por duas medidas de outros bares.

Foi ali que, em maio de 1956, Tom Jobim e Vinicius de Moraes combinaram a parceria para “Orfeu da Conceição”. Mas atenção: Tom não tinha o hábito de batucar no mármore nem Vinicius escrevia versos na toalha de papel — as canções nasceram depois, na rua Nascimento e Silva, 107, em Ipanema.

O registro na parede foi inaugurado por José D’Ávila, pintor e soprador de vidro que fabricou um copo para cada habitué da uisqueria. No cenário artístico improvisado, destacavam-se um poema de Paulo Mendes Campos; a pauta com a melodia de “Aquarela do Brasil”, por Ary Barroso; dedicatórias de Sérgio Porto e Dolores Duran; o jamegão de Pablo Neruda; traços de Di Cavalcanti, Antonio Bandeira, Milton Dacosta, além de uma marinha de Pancetti, sem azul do céu, sem verde do mar, toda em vermelho-batom.

[ x ]

Um dia ela apareceu coberta de tinta nova. O proprietário resolvera limpar aquela besteira. Foi a primeira morte do Villarino. A segunda, na segunda (16), quando os donos anunciaram seu fechamento. Aberto em 1953, o restaurante ficava no Centro, região em que o comércio foi mais atingido pela pandemia.

O último moicano era o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, morto em abril, que almoçava filé de frango à milanesa, bem fininho, com arroz e feijão, servido pelo garçom Marlon Brando. Uma pena que Luiz Alfredo, em seus romances, jamais tenha feito o delegado Espinosa beber um uísque no Villarino. Valendo-se do gabarito fosfórico, lógico.

Painel de ilustrações do Villarino: Vinicius de Moraes, entre Lúcio Rangel e o filho Pedrinho. À direita, de pé, Paulo Mendes Campos, atrás de Fernando Lobo
Painel de ilustrações do Villarino: Vinicius de Moraes, entre Lúcio Rangel e o filho Pedrinho. À direita, de pé, Paulo Mendes Campos, atrás de Fernando Lobo - Reprodução
Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Hélio Schwartsman O doce sonho do infectologista, FSP

 Um infectologista otimista talvez sonhasse com uma vacina contra a Covid-19 com 95% de eficácia, mas acho que nem o mais panglossiano deles esperaria dois imunizantes que oferecessem tais níveis de proteção. Não obstante, foi exatamente o que vimos nos últimos dias, com dois laboratórios, Pfizer/ BioNTech e Moderna, anunciando resultados dessa magnitude em seus ensaios de fase 3. Bônus leibniziano extra: ambos os produtos parecem funcionar bem também para idosos, o que era uma preocupação.

Coincidentemente, os dois fármacos se valem de uma tecnologia genética nova na produção de vacinas, a de RNA mensageiro. Resta saber se ela é muito superior às outras ou se o Sars-CoV-2 é um vírus facilmente “vacinizável”. Vamos saber em breve, assim que forem divulgados os resultados dos testes de imunizantes que empregam outras técnicas.

Ainda falta conhecer detalhes importantes, mas, havendo vacinas com tais níveis de eficácia, dá para pensar em controlar a pandemia em escala global ao longo dos próximos dois anos. Tudo dependerá da logística de produção, distribuição e aplicação, que não é trivial. Estamos falando de bilhões de doses, bilhões de seringas (será que não é o caso de reavivar as velhas pistolas de vacinação?) e de enorme mobilização de pessoal.

[ x ]

As vacinas genéticas, diferentemente das que utilizam outras técnicas, precisam ser conservadas sob temperaturas muito baixas — 70°C negativos no caso da da Pfizer. Não chega a ser um impeditivo, já que é possível fazer o transporte final, de poucos dias, em gelo seco, mas é uma dificuldade, que exige ainda mais dos planejadores.

Há boas notícias até para o presidente Jair Bolsonaro, que age como um inimigo jurado das vacinas. Com 95% de eficácia, inclusive entre idosos, imunizar-se se torna mais uma questão de proteção individual do que um dever comunitário. Fica mais fraco o caso da obrigatoriedade da vacinação.


Vícios de origem, Editorial FSP

 Uma das estratégias mais comuns de um candidato em segundo turno é buscar reduzir sua rejeição no eleitorado e, tanto quanto possível, potencializar a do adversário. Assim procederam, em entrevistas à Folha, Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL), que travam em São Paulo a disputa mais vistosa das eleições municipais.

Em busca da reeleição, o prefeito tucano afirma que a cidade “vai vencer os radicais”, sem nominá-los. Ao mesmo tempo, associa Boulos, um líder do movimento dos sem-teto, e o PSOL ao PT: os dois partidos teriam “a mesma matriz ideológica” e “atuação conjunta”.

Covas explora, claro, o antipetismo encontrado em amplas proporções entre os paulistanos. Em outubro, segundo o Datafolha, 54% dos eleitores da cidade declaravam que não votariam em um nome apoiado pelo ex-presidente Lula.

O psolista, que moderou o discurso na campanha, procura responder a questionamentos sobre suas promessas de gastos vultosos e, em especial, sobre a declaração desastrada em que apontou a contratação de mais servidores como meio de elevar a arrecadação previdenciária do município.

A tarefa seria mais fácil se o PSOL —originado de uma ala dissidente do PT que se recusou a apoiar a reforma da Previdência proposta por Lula em 2003— não tivesse um histórico de apoio a teses temerárias do ponto de vista fiscal.

[ x ]

Do lado tucano, a fragilidade mais evidente é ninguém menos que o governador João Doria, de quem Covas foi vice e cujo apoio sua campanha trata de minimizar.

Como aponta Boulos, Doria suscita ainda mais rejeição do que o líder petista na capital, no limite da margem de erro da pesquisa Datafolha. Nela, 60% rechaçavam a hipótese de votar em um candidato endossado pelo governador.

Este abandonou prematuramente o mandato na prefeitura, que usou como trampolim para conquistar o governo do estado —e sua ambição notória é, de fato, a Presidência. Na campanha de 2018, esforçou-se para vincular seu nome ao de Jair Bolsonaro, hoje seu rival.

“Covas é o candidato da continuidade, ele é sócio de Doria nesse projeto”, diz Boulos. Para incômodo do prefeito, nem mesmo se vê projeto claro ou uma marca da gestão a ser apresentada na campanha. O pacote de privatizações perdeu o protagonismo de quatro anos atrás, e as esperadas melhoras na zeladoria não se fizeram notar.

Permanecem os múltiplos problemas da metrópole, ora agravados pela pandemia, que já desafiaram direita, esquerda e centro. Na busca pelo volátil voto paulistano, o recurso não raro é apresentar-se como a alternativa menos ruim.

editoriais@grupofolha.com.br