sábado, 4 de julho de 2020

A sucessão de Celso de Mello, editorial OESP

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

04 de julho de 2020 | 03h00

Diante das afrontas do presidente Jair Bolsonaro e seu entorno ao Supremo Tribunal Federal (STF), as atenções estão voltadas para o nome que ele indicará para substituir o ministro Celso de Mello, que completará 75 anos em novembro – idade máxima para permanecer na ativa. Além de decano da Corte, ele é o relator do pedido de abertura de inquérito enviado pela Procuradoria-Geral da República contra Bolsonaro para apurar seu envolvimento em crimes denunciados pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Mello também se tornou a voz de autoridade institucional do STF, respondendo às diatribes contra a democracia feitas por Bolsonaro. 

Pela Constituição, a escolha de um ministro do STF é feita pelo presidente da República e o nome escolhido é enviado ao Senado, para ser sabatinado. Após a sabatina, a Comissão de Constituição e Justiça decide se o indicado preenche os requisitos de “reputação ilibada” e “notável saber jurídico”. Se for aprovado, a indicação será levada a votação em plenário onde, para ser confirmada, precisa ter o voto favorável de 41 dos 81 senadores. 

Esse modelo de indicação é semelhante ao adotado nos Estados Unidos, cujas instituições serviram de inspiração para a construção do Estado brasileiro após a proclamação da República. Desde a Constituição de 1891, o modelo sofreu poucas alterações. Entre os pré-requisitos, a Carta exigia reputação ilibada e “notável saber”. A expressão “notável saber jurídico” surgiu na Constituição de 1934. As demais constituições – inclusive na época da ditadura militar – atribuíram ao Senado a prerrogativa de votar o nome indicado pelo chefe do Executivo. A exceção foi a Constituição fascista de 1937, que submetia a escolha a um Conselho Federal. 

Ainda que nos Estados Unidos o mandato dos ministros seja vitalício, enquanto no Brasil ele expira aos 75 anos, a maior diferença entre os dois modelos não é de caráter formal, mas substantivo. Nos Estados Unidos as sabatinas dos indicados para a Suprema Corte são rigorosas e duram dias. Os indicados têm de demonstrar conhecimento de direito, de jurisprudência e de doutrinas jurídicas. Suas vidas e carreiras são minuciosamente escrutinadas. No Brasil, as sessões são protocolares. Costumam durar algumas horas e – com raras exceções, como nas sabatinas de Dias Toffoli, Edson Fachin e Alexandre de Moraes – os senadores se limitam a fazer elogios aos indicados. 

Nos 131 anos de Brasil republicano, só foram rejeitadas cinco indicações – todas feitas por Floriano Peixoto. Nos Estados Unidos, em mais de 230 anos o Senado já rejeitou 12 indicações da Casa Branca e em 11 vezes a Casa Branca retirou os nomes indicados para evitar que fossem rejeitados. Há casos em que os próprios indicados declinaram da indicação, quando perceberam que seriam rejeitados, e em que os senadores impediram a votação, fazendo discursos intermináveis durante as sessões. Os últimos casos são exemplares. Um ocorreu em 1987, quando Ronald Reagan indicou Douglas Ginsburg, que foi rejeitado depois que se soube que fumara maconha quando adulto. O outro ocorreu em 2005, quando George W. Bush indicou uma assessora, Harriet Miers.

Considerada despreparada até pelos senadores governistas, só não sofreu uma rejeição humilhante porque desistiu da indicação antes do início da votação. 

Diante das tensões institucionais que o País enfrenta, é de esperar que o Senado brasileiro se inspire no americano e passe a ser mais rigoroso nas sabatinas. Entre outros motivos, porque os nomes que têm sido aventados pelo Planalto para a vaga de Celso de Mello não são de ínclitos juristas, mas de bacharéis formados em cursos de segunda linha, sem maior experiência jurídica e notório saber. Se o Senado não tiver disposição para cobrar sólida formação jurídica e coragem de rejeitar indicações medíocres, ele estará comprometendo as instituições. Como pode a Suprema Corte zelar pela Constituição se passar a contar com um ministro sem preparo e que não hesitará quando tiver de optar entre os interesses obscurantistas de seu padrinho político e o Estado de Direito?

'Não se pode trabalhar 20 horas só por ser informal', diz presidente do TST, OESP

Rafael Moraes Moura e Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo

04 de julho de 2020 | 05h00

BRASÍLIA - Na semana em que entregadores de aplicativos foram às ruas pedir melhores condições de trabalho, a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)Maria Cristina Peduzzi, defende em entrevista ao Estadão garantia mínima de acesso à saúde e limite de jornada para trabalhadores autônomos. Segundo ela, esses direitos fazem parte de um “patamar civilizatório mínimo” à categoria. “Não é porque ele não é empregado (com carteira assinada) que pode trabalhar 18 horas, 20 horas (por dia).”

Maria Cristina considera que a legislação atual sobre o teletrabalho é suficiente para dar segurança a empresas e trabalhadores no uso desse instrumento, que deve se manter em alta no mundo pós-pandemia. A ministra avalia ainda que é preciso um “ponto de equilíbrio” na reabertura dos estabelecimentos, que leve em conta a preservação de vidas. “A preservação da vida é o norte.”

Maria Cristina Peduzzi
Segundo Maria Cristina, ‘temos de garantir à categoria de trabalhadores autônomos patamar civilizatório mínimo’. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Confira os principais trechos da entrevista.

O governo discute uma política para incentivar geração de empregos no pós-pandemia e fala em reduzir encargos. Esse é o caminho?

A situação é muito complexa. Eu não teria uma fórmula. Reduzir custos significa inclusive reduzir encargos sociais, sempre foi uma alternativa posta para gerar empregabilidade. Mas não é um procedimento simples, porque depende de lei. É uma proposição que sempre se renova, mas acho que a questão é mais complexa do que apenas pensar nessa alternativa como solução. Pode ser uma alternativa, mas não é fácil e diria que não é suficiente.

O que mais precisaria ser feito?

Antes da pandemia, vivíamos crise de empregabilidade decorrente da própria revolução industrial 4.0. Ela foi agravada pela pandemia. A maioria das pessoas, especialmente as que não têm condições de trabalhar pelo meio remoto, estão vivendo momento difícil. As empresas estão vivendo momentos difíceis. O trabalho autônomo por meio de plataformas digitais está se expandindo. O próprio trabalho remoto está se expandido. A soma desses fatores preocupa no sentido de manutenção de empregos. O governo tomou essa providência por meio da adoção de medidas provisórias, os mecanismos foram importantíssimos, responderam pela manutenção de 12 milhões de contratos de trabalho. Mas o que se percebe é que a relação de emprego com carteira assinada é uma das alternativas. Hoje temos outras que devem também ser reconhecidas, que são o trabalho autônomo realizado no sistema dessa economia sob demanda, por meio das plataformas. Temos de ter uma visão bem ampla da postura que devemos adotar para enfrentar as novas demandas de um mercado que será diverso, mais especializado e mais restrito do que aquele em que vivíamos antes da covid.

No trabalho sob demanda, há os entregadores e motoristas de aplicativos. Ao mesmo tempo que é uma oportunidade, isso também é apontado como grande fator de precarização do trabalho. Como equacionar isso num novo mercado?

Temos de reconhecer o trabalho por meio das plataformas, o que alcança os motoboys, e a situação de hoje é a da maioria dos prestadores de serviço. Nós devemos garantir a essa categoria de trabalhadores autônomos um patamar civilizatório mínimo. É preciso que todos os trabalhadores que prestam serviço de forma autônoma tenham resguardada sua condição previdenciária, não só aposentadoria, mas a garantia de que, se estiverem enfermos ou sofrerem um acidente, terão remuneração pela Previdência Social. É preciso garantir acesso ao sistema de saúde.

Isso inclui testes de covid-19?

Aí vai depender se é uma atividade que, como os profissionais de saúde, é de risco.

Alguma outra garantia?

Eles têm de ter uma forma de controle mínimo que envolva jornada de trabalho para compatibilizá-la com necessidades físicas de descanso. Não é porque ele não é empregado que pode trabalhar 18 horas, 20 horas (por dia). Ele estará se arriscando e arriscando a vida, no caso de um motorista, das pessoas que ele conduz ou com quem ele cruza. Convém uma disciplina normativa que estabeleça uma forma de fiscalização do exercício da atividade em quesitos que dizem respeito à saúde do trabalhador. Esse tipo de trabalho é uma realidade e precisa ser normatizado.

Na questão da jornada, significa ter um mecanismo de controle para evitar que o trabalhador autônomo exceda a própria capacidade humana de trabalho?

Exatamente. As plataformas deveriam ter um sistema de controle para resguardar a saúde (dos trabalhadores). Hoje, com o desenvolvimento tecnológico, isso evidentemente deve ser possível. 

Já no caso da saúde, isso significa garantir acesso a um plano de saúde?

Não estou recomendando que seja por meio de um plano. O que digo é que deve haver um sistema que lhe garanta acesso ao sistema de saúde.

Nos últimos meses, o TST vinha negando reconhecimento de vínculo empregatício a motoristas de aplicativo. Esse patamar mínimo civilizatório é uma opinião da sra., ou um posicionamento que está sendo construído dentro do tribunal?

O tribunal julga o processo concreto que lhe foi submetido. Estou dando opiniões minhas, pessoais, sobre um contexto. Não há nenhuma decisão num sentido ou outro.

Como a sra. viu a paralisação de motoboys de aplicativos?

Eu não entro no mérito porque não examinei as condições concretas de trabalho, e amanhã poderei ter de julgar no tribunal. A greve é um direito fundamental, ou seja, está prevista na Constituição. Não havendo vínculo de emprego, não é uma greve no sentido literal, mas é uma paralisação que objetiva melhores condições para a prestação de trabalho. É possível negociar coletivamente essas condições? É possível, de alguma forma, não pelo sistema da CLT, mas pelo sistema amplo da própria negociação coletiva entre as partes. São novas lentes. Todos os meios pacíficos que são exercidos para objetivar melhoras de condições de trabalho comportam exame e negociação. É um meio legítimo de reivindicação, que comporta exame e diálogo. Diálogo é a palavra.

O vice-presidente do TST, ministro Vieira de Mello, disse ao ‘Estadão’ ver risco de desmonte na proteção social com a reforma trabalhista. A sra. concorda?

Vejo com bons olhos as medidas provisórias e essa legislação editada com a reforma trabalhista. E penso que não podemos fechar os olhos para a realidade. A realidade nos mostra hoje que a CLT não é a única alternativa. A preocupação é maior com a garantia de um trabalho do que com a garantia de um emprego, porque essa é a realidade no mundo todo. A sociedade está mudando. Eu não vejo desmonte de rede de proteção (social). As reformas estão sendo editadas para disciplinar e proteger o trabalho humano, pela forma viável nos tempos de hoje. Se nós pudermos manter o vínculo de emprego nas atividades onde isso é possível, ótimo, é o melhor sistema, é o que dá uma efetiva garantia. Mas não podemos descuidar de outras formas de trabalho que existem e precisam ser disciplinadas. 

O Brasil enfrenta novos casos e óbitos diários de covid-19, e mesmo assim alguns governadores já falam em abertura geral dos estabelecimentos. A sra. acha que há como fazer isso sem pôr em risco os trabalhadores?

Isso é uma decisão política, um assunto do Executivo. São os governos estaduais, municipais e federal que têm condições de decidir isso porque exige dados técnicos. A Justiça do Trabalho nem pode dizer sobre possibilidade de abertura ou não, ela pode resolver conflitos que surjam no âmbito das relações.

De um lado, especialistas em saúde defendem o distanciamento social e a preservação de vidas. De outro, há aqueles que falam na preservação de empregos e da economia, como o presidente Jair Bolsonaro. É uma escolha de Sofia?

O ponto de equilíbrio deve ser buscado. Eu compreendo que sejam decisões políticas que levam em conta a preservação da vida, que é o nosso bem maior, e a preservação da economia, que é renda. São decisões difíceis, mas são possíveis de ser compatibilizadas.

A sra. já disse que o teletrabalho veio para ficar e que cabe tanto ao empregado quanto ao empregador monitorar questões como jornada. Há dentro do próprio tribunal quem defenda uma regulamentação adicional, para garantir o ‘direito à desconexão’. Como a sra. vê?

Não é necessário regulamentação adicional. O teletrabalho já está regulamentado na CLT, por meio da reforma trabalhista. A tendência é ele ser bem mais utilizado daqui para frente. Isso otimiza tempo para o empregado, reduz custos para o empregador, já que 21% aproximadamente dos acidentes de trabalho ocorrem durante o percurso de ida e volta do trabalho. Acho que a legislação que temos já é suficiente. O que é importante talvez seja um esclarecimento às partes. É importante que o contrato individual estabeleça essas questões. Acho que tem de se definir bem as condições para evitar litígios. E uma das formas é a previsão no contrato, de detalhes de interesse daqueles contratantes.

Aos 99 anos, o ‘banqueiro invisível’ ainda dá as cartas. OESP

Mônica Scaramuzzo, O Estado de S.Paulo

04 de julho de 2020 | 14h11

Até pouco tempo antes de a pandemia do coronavírus colocar o Brasil em quarentena, o banqueiro Aloysio de Andrade Faria dava expediente na sede do banco Alfa, na região da Avenida Paulista, pelo menos uma vez por semana. Agora, de sua fazenda de Jaguariúna, no interior de São Paulo, o mineiro de Belo Horizonte continua decidindo, com mãos de ferro, os rumos de seu império.

ctv-vjd-aloysio
O banqueiro Aloysio de Andrade Faria  Foto: Arquivo Pessoal

Aos 99 anos, Faria é o banqueiro mais velho da lista da revista Forbes e o terceiro mais idoso entre todos os bilionários, com uma fortuna estimada em US$ 1,7 bilhão (cerca de R$ 9 bilhões). Prestes a completar um século de vida em novembro, o magnata, que estudou medicina e herdou aos 28 anos o banco que viria a ser o Real, quando seu pai morreu, prefere a discrição dos bastidores às luzes dos holofotes. 

Contemporâneo de uma linhagem de banqueiros como Olavo Setubal (Itaú), Walther Moreira Salles (Unibanco) e Amador Aguiar (Bradesco), Faria sobreviveu a inúmeros presidentes e regimes de governo, ministros da Fazenda e presidentes do Banco Central, pacotes e crises econômicas. 

“Aloysio é um dos mais sofisticados operadores financeiros do Brasil. É um banqueiro invisível que sempre fez questão de ficar longe de Brasília e das rodas do governo”, define o economista e ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, de 92 anos. “Ninguém o vê fumando charuto cubano, bebendo Romanée Conti. Está sempre submerso.”

Mais do que banqueiro, Faria tornou-se um profícuo empreendedor em mais de 80 anos de vida empresarial. O grupo controlado por ele engloba não apenas o banco Alfa, mas também uma dezena de empresas, como a rede de hotéis Transamérica, emissoras de rádio, a fabricante de água mineral Águas da Prata, a gigante de material de construção C&C e a produtora de óleo de palma Agropalma, entre outros negócios. “Ordem sem progresso é inútil, progresso sem ordem é falso”. Esta frase, estampada em placas nas empresas do banqueiro, é a sua filosofia de trabalho.

Há ainda na lista um capricho particular: a sorveteria La Basque. Simplesmente porque ele adora sorvetes. Faria costumava dizer que no Brasil não tinha um sorvete bom e mandou chamar um especialista americano para criar o seu próprio. “Ele fazia questão de escolher os sabores”, diz um ex-executivo do grupo.

Retiro

Viúvo há quase três anos, depois de um casamento de mais de sete décadas, Faria vive agora recluso em sua fazenda em Jaguariúna, em uma propriedade em estilo clássico, construída com pedras trazidas da Inglaterra (país no qual costumava passar longas temporadas), em frente a um lago. Não abre mão de hastear todos os dias as bandeiras do Brasil e de Minas Gerais na fazenda, contam pessoas próximas a ele.

Embora esteja fora do dia a dia dos negócios – o grupo financeiro e as empresas têm há anos gestão profissionalizada, a cargo de executivos de sua confiança –, o banqueiro tem sempre a palavra final em decisões, dizem pessoas que convivem com ele. Uma geração de executivos foi moldada para cuidar dos negócios – os chamados “prata da casa”, tão discretos quanto ele. Faria não deu entrevista para essa reportagem.

Nem a venda do Real em 1998, por US$ 2,1 bilhões, na época o quarto maior banco privado do País, jogou luz sobre o banqueiro. Faria atuou nos bastidores da venda do seu banco ao holandês ABN Amro (posteriormente comprado pelo Santander), a despeito do receio da abertura do mercado financeiro ao capital estrangeiro às vésperas da desvalorização do real, na campanha à reeleição de FHC. Os grandes bancos reagiram e foram às compras nos anos seguintes. 

O negócio, curiosamente, foi fechado no dia do jogo entre Brasil e Holanda, que levou a seleção brasileira para a final da Copa da França. No dia da assinatura, Faria não apareceu. Delegou a tarefa aos executivos. Em vez de fazer uma comemoração para celebrar o negócio, preferiu se reunir com a família.

Maior banco privado

Nascido em Belo Horizonte, Faria veio de família rica. Seu avô era latifundiário no norte de Minas Gerais e criou-se na política, assim como seu pai, que decidiu fundar em 1924 o Banco da Lavoura de Minas Gerais, cuja regra era “emprestar pouco para muitos”. Foi um banco que cresceu na política do “café com leite” do Brasil da época – quando o poder nacional era dividido entre as oligarquias mineira e paulista.

Em poucas décadas, a instituição se tornou o maior banco privado na América Latina. Inicialmente, Faria não pensava em seguir a carreira de banqueiro. Havia estudado medicina na UFMG e se especializado em gastroenterologia pela Universidade Northwestern, de Chicago. Com o morte do pai, em 1948, herdou, ao lado do irmão mais novo, Gilberto, o banco.

“Os filhos herdaram o banco do pai em um momento histórico para o sistema financeiro do País, quando os bancos paulistas ainda não eram tão proeminentes, e o País era dominado por instituições estrangeiras”, lembra o economista Fernando Nogueira da Costa, professor de Economia da Unicamp e estudioso sobre o sistema financeiro brasileiro. Foi o primeiro banco privado a abrir, nos anos 1960, uma filial em Nova York, na 5.ª Avenida, próximo a um apartamento que a família mantinha na metrópole. 

Aloysio Faria até tentou por pouco tempo conciliar o consultório médico e a gestão do banco, sem sucesso. Enquanto o banco crescia, Faria recebeu uma proposta para comprar o Unibanco, de Walther Moreira Salles. Os dois mineiros chegaram a sentar para conversar. Falaram de tudo, menos do negócio. “Como ele não me falou nada (sobre a venda do banco), também não perguntei”, relatou após o encontro, segundo uma pessoa íntima da família.

Disputa familiar

Por duas décadas, Aloysio Faria se revezou na gestão do banco com seu irmão. Mas Gilberto decidiu seguir a carreira política em um momento crítico de polarização nos anos 1960. Como genro de Tancredo Neves (então primeiro-ministro durante o governo João Goulart) e padrasto do hoje senador Aécio Neves, foi deputado federal pelo PSD e pela Arena entre 1963 a 1971. 

Foi nesse último ano que os irmãos se desentenderam sobre a gestão. Os dois cindiram o Banco da Lavoura. Aloysio ficou com os ativos que se tornaram o banco Real, e Gilberto, com o Banco Bandeirantes. A contenda entre os irmãos extrapolou os negócios. Ao dividirem a fortuna, Aloysio e Gilberto nunca reataram suas relações. “Os avós nunca mais se falaram, mas os netos se dão bem”, diz uma pessoa próxima à família. 

Anos atrás, Aloysio foi obrigado a se defender nos tribunais contra uma ação milionária trabalhista movida por um de seus ex-genros. Carlos Ortiz Nascimento, que administrava os negócios não-financeiros do grupo, exigiu um naco da fortuna do sogro, alegando ter construído parte do império de Faria, como os Hotéis Transamérica e a Agropalma. Em quase todas as batalhas na Justiça, Aloysio venceu, mas ainda há processos em curso. Procurado por meio do seu advogado, Ortiz Nascimento não quis se manifestar. 

ctv-f21-aloysio-faria-2
Aloysio Faria e a esposa, Clea Dalva, em 1999 Foto: Renata Jubran/AE

Perfil discreto

Avesso a colunas sociais, Aloysio também nunca foi de frequentar rodas da high society. Esse papel cabia à esposa Cléa Dalva e às cinco filhas. O banqueiro tem 17 netos. “Ele discorre sobre vários assuntos com grande erudição”, diz o empresário David Feffer, presidente do conselho de administração do grupo Suzano. “Como meu pai, ele dividia uma paixão pelas artes e cavalos árabes.” Nos anos 1960, Faria importou cavalos árabes dos EUA, ampliando a disseminação da raça no Brasil e se mantém como um dos maiores criadores. Também tomou gosto por gado holandês.

Entusiasta das artes, foi diretor do Museu de Arte Moderna de Belo Horizonte e também do Museu de Arte de São Paulo. Sua esposa era colecionadora de esculturas e quadros e tinha obras originais de Portinari, Djanira e Maria Leontina. Ao longo dos últimos anos, fez doações milionárias para saúde e educação.

Mesmo afastado da medicina, nunca deixou o assunto de lado. Ajudou a cuidar da própria saúde e também da de sua esposa. Há alguns anos, curou-se de um câncer e montou um “mini-hospital” no seu hotel em São Paulo, conta um amigo. “Ele costuma ler e sempre me manda artigos científicos de fora para trocar impressões”, também confidencia o médico urologista Miguel Srougi, amigo de longa data.

Faria também tem suas extravagâncias, entre elas um jatinho (ele também é dono de uma empresa de táxi aéreo) e um Porsche que dirigiu há até pouco tempo. E também não abandonou o sorvete. “Ele é rigoroso durante a semana, mas toma quatro bolas no fim de semana”, diz um dos seus netos.

“Gosto é mesmo de ficar sentado na minha varanda lendo em frente ao lago”, confidenciou a um amigo próximo. E é o que ele tem feito nestes tempos de quarentena. Como um bom médico, decidiu pelo isolamento. A festa planejada pela família para comemorar seu centenário está, por ora, suspensa.