sexta-feira, 12 de junho de 2020

Fernando Reinach Um negócio da China, OESP

Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo

12 de junho de 2020 | 11h33

Com o relaxamento prematuro da quarentena no Brasil, o que não vai faltar são pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Por esse triste motivo o Brasil não só se tornou o local ideal para testar novas vacinas, como se transformou num dos países em que somente uma vacina pode salvar a vida de dezenas de milhares de pessoas. Foi nesse ambiente que o governo do Estado de São Paulo, através do Instituto Butantã, está assinando um contrato com a empresa chinesa Sinovac Biotech. O acordo, que ainda não foi divulgado na íntegra, é o seguinte: o governo de São Paulo recruta os voluntários para os testes de uma vacina que está sendo desenvolvida pela Sinovac e paga os custos de todo o ensaio clínico fase III. Algo que deve custar por volta de R$ 100 milhões (os valores finais não foram divulgados). Em troca o Instituto Butantã terá o direito, caso os testes comprovem a eficácia da vacina, a construir uma fábrica da vacina no Estado de São Paulo e a produzir um número ainda não divulgado de doses sem ser obrigado a pagar os direitos de propriedade intelectual para a Sinovac. 

Esse é um negócio da China, seguramente para a Sinovac, que conseguiu um financiador e os pacientes para testar seu produto a custo zero. E talvez também para o Brasil, pois caso a vacina comprove sua eficiência o Butantã poderá produzi-la localmente. Em suma, estamos pagando agora por um produto que ainda não existe. Esse é mais um dos custos de não termos conseguido controlar a propagação do vírus.

PUBLICIDADE

A questão é saber qual as chances dessa aposta dar certo, e isso depende de os ensaios clínicos demonstrarem que a vacina funciona, e do Butantã ser capaz de produzir a vacina o mais rápido possível a um custo razoável.

vacina
A meta do governo de São Paulo é de que a vacina seja disponibilizada no primeiro semestre de 2021. Foto: Andreas Gebert/Reuters

A vacina da Sinovac é feita a partir de partículas virais de SARS-CoV-2 inativadas, uma técnica clássica que comprovadamente funcionou para diversos vírus e é usada em todo o mundo. Sem dúvida isso aumenta as chances de sucesso. Mas ela tem suas dificuldades. Para produzir o vírus em grande quantidade primeiro a Sinovac isolou amostras de vírus de diversos pacientes e desenvolveu um método para infectar células cultivadas in vitro (fora de um ser vivo). As células escolhidas são derivadas de um macaco e se chamam células Vero. Elas se dividem bem fora do corpo do macaco e são aparentemente imortais pois não envelhecem. As células são crescidas em um meio de cultura e inoculadas com o vírus, passado a produzir grande quantidade de partículas de SARS-CoV-2.

Após um certo tempo, todo o meio de cultura é retirado e o vírus é inativado com um composto químico para que não provoque a doença quando injetado em seres humanos. Depois o vírus é purificado para retirar todos os restos das células de macaco. Feito isso, o vírus inativado é combinado com estabilizantes e colocado em frascos. A vacina está pronta. O principal problema dessa metodologia é a preocupação com o aparecimento de mutações durante a replicação do vírus por muito tempo nas células de macaco. De fato, os cientistas descobriram que algumas mutações apareceram durante os primeiros cultivos, mas foram poucas, e o vírus aparentemente cresce bem e não se altera muito quando se reproduz nas células de macaco. Outro problema é que o cultivo de células Vero é um processo industrial complicado, de custo alto e difícil de escalar para grandes volumes. Além disso, a fábrica estará produzindo uma grande quantidade de partículas virais capazes de produzir a covid-19 e contaminar os funcionários, o que torna importante que a fábrica seja bem isolada. Todos esses problemas são bem conhecidos, mas podem tornar essa vacina muito mais cara que as concorrente e mais difícil de produzir em larga escala.

A Sinovac já está construindo na China uma fábrica para produzir 100 milhões de doses da vacina por ano, o que é uma boa notícia pois o Butantã poderá simplesmente copiar essa fábrica se a vacina e o processo fabril funcionarem bem. Para vacinar todo o Brasil em um ano serão necessárias duas fábricas dessas em pleno funcionamento. Imagine que o teste da fase III da vacina seja bem-sucedido, mas demore seis a 12 meses. Se iniciarmos a construção da fábrica nesse momento talvez leve mais um ano para ela estar produzindo, ou seja, teremos as primeiras doses daqui a 18 ou 24 meses. Outra possibilidade é o Butantã começar a construção da fábrica antes dos testes terminarem, mas esse é outro risco, pois, se a vacina não funcionar, todo o investimento nos ensaios da fase III e na fábrica irão para o lixo. 

Finalmente o último risco. O Butantã é um grande produtor de vacinas, mas não tem um histórico de cumprir prazos ou ser eficiente. Ele prometeu uma vacina para a Zika, para a Dengue e a cada nova epidemia promete produzir uma vacina rapidamente. Infelizmente isso nunca aconteceu. As razões são várias, mas uma delas é o fato de ser um órgão público, pouco eficiente, onde vários casos de mau uso dos recursos são bem conhecidos.

O fato é que o Brasil, por não ter conseguido controlar o vírus, se colocou no corner, e quando você está no corner, a única solução é correr riscos. Riscos que países que controlaram o vírus não precisam correr. Mas isso é o Brasil. Vamos torcer para que esse acordo seja um negócio da China também para os brasileiros.

Mais informações em Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2. Science

Jorge Amado declarou amor por Zélia Gattai em sua coluna na Folha, FSP


PORTO ALEGRE

O leitor da Folha da Manhã que comprasse o jornal em 1945 podia ler, três vezes por semana, a coluna "Conversa Matutina", do escritor baiano Jorge Amado.

Autor já consagrado, ele havia lançados 12 livros até então, incluindo alguns dos seus principais títulos como "Capitães da Areia" (1937) e "Terras do Sem-Fim" (1943).

Entre abril e julho daquele ano, pelo menos 46 colunas assinadas por Amado foram publicadas na Folha da Manhã, segundo pesquisa no acervo da Folha. O nome dele era seguido da informação "Especial para a Folha da Manhã".

Zélia Gattai e Jorge Amado em Moscou em 1951, seis anos depois da coluna publicada na Folha da Manhã - Reprodução

Em 1945, as Folhas —como eram chamadas as duas publicações da mesma empresa, uma da Manhã e outra da Noite— tinham tiragem de 80 mil exemplares. A circulação, cinco vezes maior do que a registrada no final da década anterior, foi impulsionada especialmente pela necessidade de informações sobre a Segunda Guerra Mundial.

O conflito era um dos principais temas abordado por Amado nos textos no jornal. "As viúvas, os órfãos, os mutilados, os tuberculosos, todas as vítimas do crime nazista se levantarão para acusar. E nada poderá salvar aqueles que ajudaram Hitler e Mussolini", escreveu em 15 de maio de 1945, sobre a punição dos crimes de guerra. O título desse texto era "Ciranda dos Traidores".

O escritor era antifascista e usava o espaço para combater o nazismo de Hitler. Comunista, exaltava os esforços da então União Soviética para derrotar os nazistas. Anti-imperialista, admirava até mesmo os EUA por terem se somado às forças Aliadas contra o Eixo. A Folha revelou que a CIA, a agência de inteligência dos EUA, monitorava Amado. "Garoto de recados dos comunistas", dizia um documento.

"Como os soviéticos acabaram conseguindo vencer Hitler, durante um bom tempo no pós-guerra, os comunistas eram vistos como pessoas que salvaram o mundo do fascismo", diz Josélia Aguiar, biógrafa do escritor e autora de "Jorge Amado: uma biografia" (Todavia, 2018).

Hoje tal fato pode soar contraditório, ressalta ela, já que as execuções e campos de concentração de Stálin são amplamente conhecidos. O próprio Amado, na época stalinista, rompeu com o Partido Comunista em 1956 quando veio à tona o chamado Relatório Kruschev, que revelou as atrocidades do ditador.

Entre tantos textos combativos, chamou atenção o tom apaixonado de um deles.

Jorge Amado conheceu Zélia Gattai naquele ano em São Paulo. Ela passou a trabalhar como voluntária em um comitê na praça da República. O movimento, além de apoiar o revolucionário Luís Carlos Prestes, pedia eleições livres contra o Estado Novo.

O escritor perguntou a Gattai se ela lia suas colunas na Folha. Ela disse que sim. "Pois não deixe de ler a de amanhã", ele recomendou. A cena é descrita no livro "Um Chapéu para Viagem" (1982), de Gattai. Consta também na biografia recente de Aguiar.

No acervo da Folha é possível encontrar a declaração de amor. Na coluna, parcialmente ilegível, o que se lê é uma oferta do "marinheiro pra Yemanja". O eu-lírico fala em dar "um pente pra teus cabelos penteares" e "um anel para teus dedos". "Te darei meu saveiro para nele passeares", "cantarei para teu sono sossegar" e "irei buscar a lua", escreve. "Te darei meu corpo para o afogares", finaliza.

O conteúdo da coluna confere com aquele recordado por Gattai. "A crônica — crônica ou declaração de amor? —, que meus olhos devoraram logo cedo, na manhã seguinte, era romântica e apaixonada. Não citava nome, nem era preciso; num certo trecho dizia assim: 'Eu te darei um pente pra te pentear, colar para teus ombros enfeitar, rede para te embalar, o céu e o mar eu vou te dar...", ela escreveu quase 40 anos depois.

A "manhã seguinte" tinha significado especial não só por causa da confissão amorosa no jornal. Amado avisou Gattai sobre a surpresa no dia do seu aniversário de 29 anos, em 2 de julho de 1945. A coluna foi publicada no dia 3.

"Ela já tinha admiração pela figura do escritor e foi corajosa para romper seu primeiro casamento, já que o divórcio não existia na época. Ele já tinha fama de mulherengo, mas deu muito certo, se completavam mesmo. O fato de terem posicionamento político igual foi fundamental. Ela não era só a bonita, agradável, cativante. Ela tinha também a militância", diz a biógrafa.

Na Folha da Manhã, Amado escreveu também sobre artes visuais, música e literatura, dedicando uma crônica a um dos seus autores preferidos, o inglês Charles Dickens. Mas mesmo quando escrevia sobre esses temas, não escapava da guerra e da ditadura do Estado Novo.

"Este é um ano pouco literário, ano que todas as atenções se voltam para os problemas políticos, quando os escritores, acertadamente, gastam os espaços dos jornais no comentário à situação nacional e internacional. As obras literárias não podem desejar grande repercussão neste ano de 1945, por mais importantes que elas sejam", escreveu em 26 de maio. O tema principal do texto: "Oswald de Andrade, o grande romancista".

Em São Paulo, viveu em um apartamento na avenida São João. "Procurei durante muito tempo descobrir qual era o número. Encontrei cartas para ele desta época, mas não vi envelopes, por isso fiquei sem saber o número exato do endereço", conta a biógrafa. Segundo ela, o autor morou na cidade de janeiro ou fevereiro até o final do ano, quando saiu de férias após a eleição.

Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o escritor foi eleito deputado federal por São Paulo. No ano seguinte, participou da Constituinte, sendo autor da lei da liberdade religiosa.

Nas suas crônicas, tanto na Folha da Manhã como em O Imparcial, de Salvador (a partir de 1942 na coluna "Hora da Guerra"), Amado combatia o preconceito contra judeus, principais vítimas do nazismo. A coluna no jornal soteropolitano durou até janeiro de 1945, quando se mudou para São Paulo.

"Ele usava palavras e expressões que voltaram à tona recentemente, como obscurantismo, métodos feudais, nazifascistas. São discussões bastante atuais para a pauta de hoje, incluindo o antissemitismo", explica o pesquisador Márcio Muraca, autor de "Jorge Amado e o Judeu".

Em 25 de abril de 1945, citando o noticiário, Amado escreveu o seguinte na Folha da Manhã: "Há dois anos, dos 35 mil judeus que ainda resistiam no gueto de Varsóvia, 23 mil foram assassinados pelos nazis e os demais doze mil postos em campos de concentração".

"Na obra literária, o judeu aparece como um ser sensível, intelectual, culto e comunista. Um desses personagens é Samuel, do romance 'Farda, Fardão, Camisola de Dormir'. Ele é jornalista, uma figura ligada à escrita", diz Muraca.

Na noite de 3 de julho de 1945, dia em que se declarou para Gattai no jornal, Amado perguntou se ela tinha lido "o que escrevera pensando nela". "Perturbada", ela disse que leria mais tarde.

Amado, então, pediu ajuda para a última palavra do discurso que faria em um comício. "Amor", respondeu Gattai.