12 de junho de 2020 | 11h33
Com o relaxamento prematuro da quarentena no Brasil, o que não vai faltar são pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Por esse triste motivo o Brasil não só se tornou o local ideal para testar novas vacinas, como se transformou num dos países em que somente uma vacina pode salvar a vida de dezenas de milhares de pessoas. Foi nesse ambiente que o governo do Estado de São Paulo, através do Instituto Butantã, está assinando um contrato com a empresa chinesa Sinovac Biotech. O acordo, que ainda não foi divulgado na íntegra, é o seguinte: o governo de São Paulo recruta os voluntários para os testes de uma vacina que está sendo desenvolvida pela Sinovac e paga os custos de todo o ensaio clínico fase III. Algo que deve custar por volta de R$ 100 milhões (os valores finais não foram divulgados). Em troca o Instituto Butantã terá o direito, caso os testes comprovem a eficácia da vacina, a construir uma fábrica da vacina no Estado de São Paulo e a produzir um número ainda não divulgado de doses sem ser obrigado a pagar os direitos de propriedade intelectual para a Sinovac.
Esse é um negócio da China, seguramente para a Sinovac, que conseguiu um financiador e os pacientes para testar seu produto a custo zero. E talvez também para o Brasil, pois caso a vacina comprove sua eficiência o Butantã poderá produzi-la localmente. Em suma, estamos pagando agora por um produto que ainda não existe. Esse é mais um dos custos de não termos conseguido controlar a propagação do vírus.
A questão é saber qual as chances dessa aposta dar certo, e isso depende de os ensaios clínicos demonstrarem que a vacina funciona, e do Butantã ser capaz de produzir a vacina o mais rápido possível a um custo razoável.
A vacina da Sinovac é feita a partir de partículas virais de SARS-CoV-2 inativadas, uma técnica clássica que comprovadamente funcionou para diversos vírus e é usada em todo o mundo. Sem dúvida isso aumenta as chances de sucesso. Mas ela tem suas dificuldades. Para produzir o vírus em grande quantidade primeiro a Sinovac isolou amostras de vírus de diversos pacientes e desenvolveu um método para infectar células cultivadas in vitro (fora de um ser vivo). As células escolhidas são derivadas de um macaco e se chamam células Vero. Elas se dividem bem fora do corpo do macaco e são aparentemente imortais pois não envelhecem. As células são crescidas em um meio de cultura e inoculadas com o vírus, passado a produzir grande quantidade de partículas de SARS-CoV-2.
Após um certo tempo, todo o meio de cultura é retirado e o vírus é inativado com um composto químico para que não provoque a doença quando injetado em seres humanos. Depois o vírus é purificado para retirar todos os restos das células de macaco. Feito isso, o vírus inativado é combinado com estabilizantes e colocado em frascos. A vacina está pronta. O principal problema dessa metodologia é a preocupação com o aparecimento de mutações durante a replicação do vírus por muito tempo nas células de macaco. De fato, os cientistas descobriram que algumas mutações apareceram durante os primeiros cultivos, mas foram poucas, e o vírus aparentemente cresce bem e não se altera muito quando se reproduz nas células de macaco. Outro problema é que o cultivo de células Vero é um processo industrial complicado, de custo alto e difícil de escalar para grandes volumes. Além disso, a fábrica estará produzindo uma grande quantidade de partículas virais capazes de produzir a covid-19 e contaminar os funcionários, o que torna importante que a fábrica seja bem isolada. Todos esses problemas são bem conhecidos, mas podem tornar essa vacina muito mais cara que as concorrente e mais difícil de produzir em larga escala.
A Sinovac já está construindo na China uma fábrica para produzir 100 milhões de doses da vacina por ano, o que é uma boa notícia pois o Butantã poderá simplesmente copiar essa fábrica se a vacina e o processo fabril funcionarem bem. Para vacinar todo o Brasil em um ano serão necessárias duas fábricas dessas em pleno funcionamento. Imagine que o teste da fase III da vacina seja bem-sucedido, mas demore seis a 12 meses. Se iniciarmos a construção da fábrica nesse momento talvez leve mais um ano para ela estar produzindo, ou seja, teremos as primeiras doses daqui a 18 ou 24 meses. Outra possibilidade é o Butantã começar a construção da fábrica antes dos testes terminarem, mas esse é outro risco, pois, se a vacina não funcionar, todo o investimento nos ensaios da fase III e na fábrica irão para o lixo.
Finalmente o último risco. O Butantã é um grande produtor de vacinas, mas não tem um histórico de cumprir prazos ou ser eficiente. Ele prometeu uma vacina para a Zika, para a Dengue e a cada nova epidemia promete produzir uma vacina rapidamente. Infelizmente isso nunca aconteceu. As razões são várias, mas uma delas é o fato de ser um órgão público, pouco eficiente, onde vários casos de mau uso dos recursos são bem conhecidos.
O fato é que o Brasil, por não ter conseguido controlar o vírus, se colocou no corner, e quando você está no corner, a única solução é correr riscos. Riscos que países que controlaram o vírus não precisam correr. Mas isso é o Brasil. Vamos torcer para que esse acordo seja um negócio da China também para os brasileiros.
Mais informações em Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2. Science
Nenhum comentário:
Postar um comentário