quinta-feira, 4 de junho de 2020

Precisão, Luis Fernando Verissimo, O Estado de S.Paulo

O que faz o produto, afinal, de uma civilização que chegou à Lua ajoelhar na garganta de outro ser humano e ignorar seus protestos de que não pode respirar?


04 de junho de 2020 | 03h00

O acoplamento de módulos espaciais é uma manobra de alta tecnologia e incrível precisão. Poucos países no mundo dominam o processo. Russos e americanos disputam uma corrida pela primazia no espaço, que começou com as primeiras voltas do Sputnik em órbita da Terra, seguiu com as primeiras voltas de cães e, pouco depois, de um homem russo (ou soviético, faz tempo), com alta tecnologia e incrível precisão. Os Estados Unidos responderam com a promessa do presidente Kennedy de botar um americano na Lua, antes de qualquer outra nacionalidade, o que conseguiram. Russos e americanos atravessaram anos de História, o aquecimento e o ocaso da Guerra Fria, a morte do Kennedy, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, e hoje ocupam os mesmos módulos, acoplados no espaço com alta tecnologia e incrível precisão.

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Ainda não se sabe ao certo o que matou George Floyd. Segundo a autopsia oficial, foi o coração. Segundo uma autopsia encomendada pela família, Floyd morreu asfixiado pelo joelho do policial que pressionava sua garganta. Não se sabe se joelho pressionando garganta é uma técnica de submissão comum, para controlar detidos. Mesmo se for, os gritos de Floyd, “Não posso respirar!”, deveriam ter sensibilizado o policial que o prendia e os policiais que o cercavam. Se o joelho apertando a garganta era uma técnica de submissão admissível que apenas dera errado, então entramos no terreno do fortuito, do azar, da falta de precisão. O que faz o produto, afinal, de uma civilização que chegou à Lua ajoelhar na garganta de outro ser humano e ignorar seus protestos de que não pode respirar, que está morrendo, mesmo que a técnica de submissão seja correta?

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Nas últimas etapas de um acoplamento espacial, os tripulantes têm pouco controle sobre seus módulos. Quase tudo é decidido na base de lançamento, à distância, onde a precisão é garantida, intocada por decisões humanas. A mesma civilização que desceu na Lua apertou a cabeça do Floyd contra o chão até ele morrer. Se do coração ou de falta de ar, dá, tristemente, na mesma.

O que deve ser uma Constituição?, José Renato Nalini*, OESP


04 de junho de 2020 | 08h00

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

A Constituição está em todas as vozes que hoje exaurem a capacidade de absorção de um vendaval de ideias. Algumas altissonantes, indignadas e deflagradoras de reações. Outras, ainda mais dispostas a pegar em armas para defender a Carta Magna. Poucas as sensatas, prudentes e racionais. Nesse vozerio, a população pode perder a noção do que seja um pacto fundamental e de sua relevância para impactar a vida comum aos humanos.

Discutir sobre o significado de uma Constituição não é desafio recente. Ferdinand Lassale (1825-1864) foi convidado a fazer uma conferência exatamente sobre “Que é uma Constituição”. Dispôs-se a usar de clareza que dispensaria conhecimentos especiais dos ouvintes. Começou a comparar Constituição e Lei, ambas com uma essência genérica comum. Mas a Constituição seria uma lei básica, mais do que as comuns. Fundamental, porque seria o alicerce de todas as demais leis. Culmina por afirmar que, em síntese, em essência, a Constituição é a soma dos fatores reais do poder que regem um país.

Sua análise chega à distinção entre duas Constituições de um país: a Constituição real e efetiva, porque integralizada pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade, e essa outra Constituição escrita, a qual ele chamou “folha de papel”.

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Por que ele falou em “folha de papel”? Estava aludindo à célebre frase de Frederico Guilherme IV, que disse: “Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país, se interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma segunda Providência!”.

Esse o risco do autoritarismo. Enxergar a Constituição como uma folha de papel qualquer, que se possa rasgar ou deixar de lado quando não convier. O segredo para a continuidade pacífica de uma Nação é fazer coincidir a Constituição escrita com as suas raízes fincadas nos fatores do poder que a regem.

O Brasil adotou a forma de Estado republicano de índole democrática. Preservou a tripartição de poderes, embora tenha sacrificado a autonomia e independência formalmente assegurada a cada um deles, para incensar o Executivo. Na formatação idealizada de três funções distintas, a primazia caberia ao Legislativo. O elaborador das regras do jogo. Mas o século XX assistiu a uma hipertrofia do Executivo, talvez herança do longo período monárquico e de certa subserviência dos parlamentares que inauguraram uma espécie de feudalismo contemporâneo. Esquecem-se da vontade geral, do bem comum, para perseguir os interesses localizados dos setores que os elegeram.

Gravitam em torno ao governo, do qual dependem para atender às pretensões de seus nichos. Isso desequilibra o convívio entre os Poderes. Os parlamentares anseiam integrar o governo ou aprovar emendas para se socorrerem do orçamento, com vistas a atender demandas garantidoras de eleições.

Em cenário tal, o protagonismo deve ser exercido pelo Judiciário, que tem a missão de ser o guardião da Constituição, algo que no sistema brasileiro se distribui entre todos os juízes. Apenas nomeado juiz substituto, após o concurso, o magistrado pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei no processo sob sua apreciação. Mas o zelo abrangente em relação à compatibilidade de qualquer norma com a lei maior, é tarefa explícita do Supremo Tribunal Federal.

Dois fenômenos impedem que a Constituição seja coincidente com as reais forças do poder que, no Brasil, têm um titular exclusivo: o povo. Só ele é o dono da soberania, ou do que restou dela num planeta globalizado e que seria cada dia mais homogêneo, não fora o infortúnio da peste.

O primeiro é o próprio texto da Carta Fundamental, repleto de temas apenas formalmente constitucionais – porque estão dentro da lei magna – mas não precisariam constar dela. Verbetes imprecisos, genéricos, vagos, que fizeram prosperar a nobre e engenhosa arte da interpretação.

O segundo, é não se resignar o STF a ser apenas o hermeneuta máximo da Constituição, mas entregar-se a um excessivo cúmulo de atribuições. Para dar conta delas, sacrifica-se a missão essencial do Supremo.

Imenso bem faria o STF se sinalizasse à Nação o que vale e o que não vale, com a presteza que a CF exige de qualquer ato judicial. Se fosse expedito na apreciação das repercussões gerais. Se respeitasse prazos para devolver processos com pedido de vista. Se pudesse se servir de linguagem direta, objetiva e sintética e não se extasiasse com a produção de doutrina, que não é sua função. E, principalmente, se atuasse como colegiado e não como arquipélago de ilhas de antagonismo, às vezes deixando atônita a sociedade que observa seu funcionamento.

Aí sim, o povo teria condições de assimilar com exação o que significa uma Constituição e se afeiçoar a ela, contribuindo espontaneamente para sua observância, o que ajudaria a transformar o Brasil que temos no Brasil com que um dia já sonhamos.

*José Renato Nalini é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela USP, autor de Rebelião da Toga e de outros livros

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A chave do problema, *Guy Perelmuter, O Estado de S.Paulo


04 de junho de 2020 | 03h00

A criptografia, cuja raiz vem do grego kryptos (escondido) e de graphia (escrita), viabiliza o uso da Internet. É ela que permite que possamos trocar informações preservando nossa privacidade, de forma que apenas o destinatário correto seja capaz de decifrar seu conteúdo graças ao uso de operações matemáticas aplicadas sobre as mensagens. Imagine que você queira enviar uma mensagem para alguém, e que você deseja que apenas a destinatária da sua mensagem seja capaz de lê-la. Mais que isso, você também deseja que a destinatária tenha certeza que o remetente da mensagem foi você, e não alguém se passando por você. Em outras palavras, você quer garantir simultaneamente a confidencialidade da comunicação e a autenticidade de sua autoria, e quer se comunicar com qualquer pessoa que também possua chaves públicas e privadas

Como pares de chaves públicas e privadas funcionam? De forma simplificada, cada usuário possui um par de chaves: a primeira, chamada de chave privada, como o próprio nome indica, deve ser de conhecimento apenas da pessoa que a possui. A segunda chave, chamada de chave pública, é divulgada para o maior número possível de pessoas (via redes sociais e na assinatura de e-mail, por exemplo) . Para enviar uma mensagem de A para B, a remetente A deve encriptar a mensagem com a chave pública de B, e para ler essa mensagem, o destinatário B usa sua chave privada. Analogamente, se B quer enviar uma mensagem para A, deve ser utilizada a chave pública de A, que só pode ser decifrada com a chave privada associada. Você pode imaginar que a chave pública faz o papel do cadeado, trancando a informação – e essa informação só pode ser liberada com o uso de uma chave específica (a chave privada).

O grande desafio para viabilizar o modelo de criptografia de chave pública estava em conseguir utilizar um canal não confiável (a Internet) para trocar informações sensíveis, como as chaves dos usuários (necessárias para assinar e encriptar as mensagens). A resposta para essa questão foi publicada em 1978 por três cientistas de computação: o norte-americano Ron Rivest, o israelense Adi Shamir e o matemático norte-americano Leonard Adleman, que desenvolveram o algoritmo batizado com a primeira letra de seus sobrenomes (RSA) durante seu período de estudos no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Cambridge, Estados Unidos. A mesma solução havia sido encontrada cinco anos antes pelo matemático inglês Clifford Cocks enquanto trabalhava no Quartel General de Comunicações do Governo do Reino Unido (GCHQ, Government Communications Headquarters), porém seu trabalho foi classificado como confidencial e só foi divulgado em 1997.

A segurança do algoritmo RSA, amplamente utilizado para criptografar e descriptografar conteúdos transmitidos digitalmente, está baseada em um problema matemático que, até hoje, não possui solução eficiente: a fatoração em números primos de valores elevados. O problema consiste em descobrir quais são os números primos que, multiplicados uns pelos outros, resultam no número original – que é utilizado como chave para criptografar e assinar mensagens. Reforçando: a grande utilidade do RSA é que, combinando-se as chaves públicas e privadas dos usuários A e B, é possível garantir que apenas a usuária B vai conseguir ler a mensagem do usuário A, e ainda que a usuária B poderá ter certeza que o usuário A é o autor da mensagem original.

Até agora, apesar de esforços de estudiosos ao redor do mundo, não foi encontrado um algoritmo que consiga fatorar um número grande em fatores primos em um intervalo de tempo aceitável (ou seja, re-escrever esse número como um produto de números primos). Por exemplo, a fatoração de um número de 232 dígitos (representado por 768 bits em um computador) foi conseguida em 2009 após um conjunto de mais de cem computadores trabalhar no problema por dois anos – e quanto maior o número de dígitos, muito maior será a demora. A questão crítica é que até hoje não foi provado matematicamente que esse problema é impossível de ser resolvido – em outras palavras, ainda não é possível determinar se de fato não existe uma forma eficiente de fatorar um número em seus fatores primos. Porém, o advento de computadores quânticos é visto por alguns como uma ameaça ao modelo RSA, pois é possível que o processamento de diversos algoritmos seja feito de forma bem mais eficiente em máquinas desse tipo — inclusive a decomposição em fatores primos. É esse o tema da próxima coluna. Até lá.

*Fundador da GRIDS Capital e autor do livro Futuro Presente - o mundo movido à tecnologia, é Engenheiro de Computação e Mestre em Inteligência Artificial