quinta-feira, 4 de junho de 2020

O que deve ser uma Constituição?, José Renato Nalini*, OESP


04 de junho de 2020 | 08h00

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

A Constituição está em todas as vozes que hoje exaurem a capacidade de absorção de um vendaval de ideias. Algumas altissonantes, indignadas e deflagradoras de reações. Outras, ainda mais dispostas a pegar em armas para defender a Carta Magna. Poucas as sensatas, prudentes e racionais. Nesse vozerio, a população pode perder a noção do que seja um pacto fundamental e de sua relevância para impactar a vida comum aos humanos.

Discutir sobre o significado de uma Constituição não é desafio recente. Ferdinand Lassale (1825-1864) foi convidado a fazer uma conferência exatamente sobre “Que é uma Constituição”. Dispôs-se a usar de clareza que dispensaria conhecimentos especiais dos ouvintes. Começou a comparar Constituição e Lei, ambas com uma essência genérica comum. Mas a Constituição seria uma lei básica, mais do que as comuns. Fundamental, porque seria o alicerce de todas as demais leis. Culmina por afirmar que, em síntese, em essência, a Constituição é a soma dos fatores reais do poder que regem um país.

Sua análise chega à distinção entre duas Constituições de um país: a Constituição real e efetiva, porque integralizada pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade, e essa outra Constituição escrita, a qual ele chamou “folha de papel”.

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Por que ele falou em “folha de papel”? Estava aludindo à célebre frase de Frederico Guilherme IV, que disse: “Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país, se interponha uma folha de papel escrita, como se fosse uma segunda Providência!”.

Esse o risco do autoritarismo. Enxergar a Constituição como uma folha de papel qualquer, que se possa rasgar ou deixar de lado quando não convier. O segredo para a continuidade pacífica de uma Nação é fazer coincidir a Constituição escrita com as suas raízes fincadas nos fatores do poder que a regem.

O Brasil adotou a forma de Estado republicano de índole democrática. Preservou a tripartição de poderes, embora tenha sacrificado a autonomia e independência formalmente assegurada a cada um deles, para incensar o Executivo. Na formatação idealizada de três funções distintas, a primazia caberia ao Legislativo. O elaborador das regras do jogo. Mas o século XX assistiu a uma hipertrofia do Executivo, talvez herança do longo período monárquico e de certa subserviência dos parlamentares que inauguraram uma espécie de feudalismo contemporâneo. Esquecem-se da vontade geral, do bem comum, para perseguir os interesses localizados dos setores que os elegeram.

Gravitam em torno ao governo, do qual dependem para atender às pretensões de seus nichos. Isso desequilibra o convívio entre os Poderes. Os parlamentares anseiam integrar o governo ou aprovar emendas para se socorrerem do orçamento, com vistas a atender demandas garantidoras de eleições.

Em cenário tal, o protagonismo deve ser exercido pelo Judiciário, que tem a missão de ser o guardião da Constituição, algo que no sistema brasileiro se distribui entre todos os juízes. Apenas nomeado juiz substituto, após o concurso, o magistrado pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei no processo sob sua apreciação. Mas o zelo abrangente em relação à compatibilidade de qualquer norma com a lei maior, é tarefa explícita do Supremo Tribunal Federal.

Dois fenômenos impedem que a Constituição seja coincidente com as reais forças do poder que, no Brasil, têm um titular exclusivo: o povo. Só ele é o dono da soberania, ou do que restou dela num planeta globalizado e que seria cada dia mais homogêneo, não fora o infortúnio da peste.

O primeiro é o próprio texto da Carta Fundamental, repleto de temas apenas formalmente constitucionais – porque estão dentro da lei magna – mas não precisariam constar dela. Verbetes imprecisos, genéricos, vagos, que fizeram prosperar a nobre e engenhosa arte da interpretação.

O segundo, é não se resignar o STF a ser apenas o hermeneuta máximo da Constituição, mas entregar-se a um excessivo cúmulo de atribuições. Para dar conta delas, sacrifica-se a missão essencial do Supremo.

Imenso bem faria o STF se sinalizasse à Nação o que vale e o que não vale, com a presteza que a CF exige de qualquer ato judicial. Se fosse expedito na apreciação das repercussões gerais. Se respeitasse prazos para devolver processos com pedido de vista. Se pudesse se servir de linguagem direta, objetiva e sintética e não se extasiasse com a produção de doutrina, que não é sua função. E, principalmente, se atuasse como colegiado e não como arquipélago de ilhas de antagonismo, às vezes deixando atônita a sociedade que observa seu funcionamento.

Aí sim, o povo teria condições de assimilar com exação o que significa uma Constituição e se afeiçoar a ela, contribuindo espontaneamente para sua observância, o que ajudaria a transformar o Brasil que temos no Brasil com que um dia já sonhamos.

*José Renato Nalini é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela USP, autor de Rebelião da Toga e de outros livros

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