sábado, 4 de abril de 2020

Velhos, o peso do mundo, Julio Maria, OESP

Júlio Maria
25 de março de 2020 | 21h09

Ao ouvir que “só os mais velhos” estão sujeitos ao novo coronavírus e que a força jovem e criativa da parte dos vivos que interessa à humanidade deve voltar aos trabalhos agora para que o país não derreta, penso logo em como se sentem esses tais “mais velhos” aos quais o suspiro de alívio da frase se refere. Dizer que a doença “só mata velhos” é como dizer “tudo bem, só morre quem está com o pé na cova” ou “quem vai se abalar com a morte de alguém que já viveu tanto?” Não é verdade que o novo coronavírus tenha esse apetite exclusivo por pessoas com mais de 70 anos, como os leitos e os respiradores comprovam todos os dias, mas ainda que fosse, que a doença “só” levasse “esses velhos inúteis para o crescimento do país”, “essa categoria de gente que não faz a mínima falta em um processo eleitoral pelo simples motivo de que eles nem votam mais depois que completam 70 anos”, ainda deveria ser o suficiente para parar um país.

Clapton, um velho 74 anos
Os velhos se tornaram o peso do mundo, uma massa formada por toneladas de peles flácidas e ossos aerados pronta para ser sacrificada em nome do destravamento da economia. Sem engajamentos sociais que os defendam, até porque o lugar de fala de um líder dessa categoria à parte das questões modernas caberia a alguém que já não consegue mais falar alto e sem a agilidade de raciocínio para os grandes enfrentamentos, os idosos não fariam, como se lê nas casamatas do discurso do ainda presidente Jair Bolsonaro, nenhuma falta. “Isolem os velhos com mais de 60 anos (de um dia para o outro o limite baixou em dez anos) e vamos trabalhar!” Eles, os velhos, olham então para os lados e desconfiam de que, sim, é com eles mesmo. Chegou sua vez e eles mal perceberam. Estão miserável e irremediavelmente velhos. Suas mãos estão enrugadas, sua memória não é mais precisa e os movimentos são cada dia mais lentos. Velhos e dispensáveis, não importa o quão moderno tentaram ser nos últimos anos fazendo vídeo chamada para os netos aos domingos ou conversando com os filhos sobre o novo disco do Djonga. Se redimindo das durezas do passado deixando o neto dormir com a namorada em casa ou elogiando as tatuagens do filho no pescoço. Eles não fazem mais falta.
Do brilho da juventude ao cuspe do presidente, foi tudo muito rápido, como mostra uma retrospectiva resumida da vida média de um senhor de 80 anos pronto para ser jogado no quarto dos fundos. Entre os zero e os dez anos, não há mais lembranças, apenas cheiros e sensações. Até os 18, os fatos não são muito precisos e começam a surgir algumas fantasias. Não diga mentiras, mas fantasias, aquelas verdades que se esqueceram de acontecer. A partir de então, só fica o que o tempo não apaga. O primeiro elogio na sala de aula, o primeiro beijo na saída da escola, o primeiro e muitas vezes único tremor de pernas diante de um grande amor. O primeiro sexo, o primeiro LP, o aniversário inesquecível, o dia em que Elis Regina morreu. Quando vêm a linha dos 40 para os 50, os velhos se calam. A fase em que a vida para de dar e começa a tirar é lembrada em silêncio. A mãe se foi, alguns amigos partiram, os filhos se distanciaram e os chefes os trocaram por mão de obra jovem e barata.
Mas os 60 chegam redentores e a vida parece renascer nos netos. Eles trazem a alegria de uma segunda paternidade desprovida de preocupações e inundam as casas de um amor novo e vibrante. Os netos, esses mesmos que devem seguir suas vidas normais nas escolas sem mais poder passar perto do quarto dos fundos para não contaminarem ele, o velho. Há um momento da vida em que morrer por um vírus não é o problema. O que dói é ser assassinado antes de tudo acabar.

Aprendendo com a epidemia, Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo


04 de abril de 2020 | 03h00

Pragas estão entre nós desde tempos bíblicos. Quando os primeiros homens e mulheres decidiram seguir o Norte, rodear o Mediterrâneo, se dividir em levas a caminho do Oriente e Ocidente, levaram junto seus companheiros mais íntimos, adaptados por conta de milhões de anos de evolução em contato com outros animais, que continuavam em estado de mutação: caspas, piolhos e vírus. 
Rotas da seda geravam comércio de especiarias e doenças. Quando Constantinopla foi invadida enfim pelos turcos, interrompendo o comércio mundial, as caravelas portuguesas avançaram pelo Atlântico Sul e Índico e, pela primeira vez, juntaram biomas do Hemisfério Norte e Sul e de três florestas tropicais, a do Sudeste da Ásia, a africana e a brasileira. 
Com isso, os vírus de um ambiente viajaram pelas entranhas em caravelas pelos continentes e contaminaram povos distantes ou há milhares de anos isolados. Malária, febre amarela e a mortal, que se transformou em arma de guerra, varíola, até a caspa, atacaram os nativos. 
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Os indígenas do Novo Mundo foram dizimados por uma arma mais letal que ferro e chumbo de conquistadores espanhóis e portugueses: o vírus da varíola, além da cólera, gripe, sarampo, tifo, peste bubônica. Conquistadores deixavam roupas imundas para os indígenas levar. Nelas, doenças.
A aglomeração urbana é sinônimo de epidemia. Em Londres, pessoas de um bairro, que colhiam água de uma mesma fonte, começaram a morrer. Era a cólera, entre 1817 e 1823, herdada de colônias como a Índia, doença que por sinal continua ativa e visitou o Brasil anos atrás. 
O saneamento passou a ser prioritário em cidades esvaziadas como Paris e Londres, o Estado se fortaleceu, nasceu uma burocracia fortemente ligada à saúde pública. Os talheres e a etiqueta nas refeições, antes restritos a aristocratas, viraram obrigação.
Em 1917, e sobre ela muito tem se falado, a gripe espanhola, que começou numa base militar americana, varreu a Europa durante a Primeira Guerra, levada por soldados ao front de batalha. Embalagens descartáveis, garrafas e enlatados. No fim dela, o mundo viveu um desbundo: Era do Jazz, República de Weimar. Tudo era possível. Sexo livre, festas, drogas, porres, poesia no ar. Sobrevivemos? Bora, curtir.
Tivemos sífilis e tuberculose. Temos dengue, febre amarela e malária. Recentemente, tivemos contato com novos inimigos, vindos da África e Ásia, como HIV, ebola, H1N1, Sars, chicungunha, zica. Vivemos sob a ameaça constante de uma pandemia avassaladora. Sobrevivemos a todas elas, e o mundo muda, na geopolítica e nas nossas cabeças. 
O HIV trouxe dilemas morais. Sua principal via de contato é o sexo e a seringa de uma agulha. Homossexuais e viciados foram punidos, como os idosos hoje, como se fossem os responsáveis pela doença. “Problema deles que são degenerados”, pensavam os seguidores de Reagan. A Guerra Contra as Drogas, que não deu em nada, começou ali. Hoje se diz: “Problema deles que são velhos e têm doenças preexistentes”. 
O mundo já mudou. No começo da crise da covid-19, vejo gente se perdoando, reatando amizades, valorizando o menos, repensando a economia global, a desigualdade. Vejo pais que se voltaram aos filhos, aos livros. Vejo gente se dedicando a afazeres domésticos antes terceirizados, reaprendendo a cozinhar, valorizando cada grão de comida, gole de bebida. 
A arqueóloga portuguesa Joana Freitas explica: “O homem é um exemplo de superação nas linhas evolutivas. Não éramos fisicamente dominadores, nem estávamos no topo das cadeias alimentares. Éramos caçadores, mas presas fáceis também. A evolução do nosso cérebro, as capacidades intelectuais e de cognição, deu-nos a vantagem. Durante milênios, feitos de avanços e retrocessos, a espécie humana prosperou e ocupou os quatro cantos do planeta. A uma capacidade adaptativa gigante juntou-se a sobrevivência assente na coesão de grupo. Há cerca de 10.000 anos, começam a aparecer as primeiras sociedades sedentárias possíveis pela domesticação, embora incipientes de plantas e animais. Aqui, nesse preciso momento, o homem assinava com o destino. Populações crescentes e fixas num local, convivência diária com os animais domesticados e todos os parasitas a eles associados, formaram as condições perfeitas para as primeiras epidemias”. 
Joana lista as pandemias que mudaram o curso da História, e mortais, e entre elas está a peste bubônica, em Roma, entre 527-565 d.C., sob o comando do imperador Justiniano. Resultado. O império romano entrou em colapso. Nunca mais foi unificado. A data representa o início da era negra da época medieval. O medo da realidade mergulhou o Ocidente no transcendental e na idade das trevas, a Idade Média. Deus castigava aqueles que não tinham fé ou adotavam uma religião pagã. A Igreja Católica se expandiu. Deu na Inquisição.
A peste negra, entre 1343 e 1351, atacou a Ásia e Europa e matou, segundo Joana, cerca de 80 milhões de pessoas. Afetou toda a economia mundial. Porém o caminho foi oposto. A medicina rompeu os tabus do catolicismo e passou a tratar o corpo humano como algo a ser investigado, não como a face de Deus. Deu na Renascença. 
Epidemias trouxeram trevas e iluminismo. Escureceu e acendeu. Nos bloqueou ou nos expandiu. Uma das nossas virtudes é a de ganhar sabedoria de experiências negativas. Nós vamos superar essa, com união e serenidade. E deixemos a estupidez falando sozinha.

Testes de baixa qualidade, Fernando Reinach , OESP

Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo
04 de abril de 2020 | 05h00


O que todos gostariam de saber é o número real de pessoas que estão sendo infectadas pelo novo coronavírus. Obter esse dado não é simples curiosidade científica, dele depende a estratégia que adotaremos para sair do distanciamento social e da crise econômica. Diversos países estão iniciando pesquisas para descobrir esse número. No Brasil epidemiologistas foram financiados para fazer esse levantamento, mas estão esbarrando em um problema: a baixa qualidade dos testes rápidos importados pelo governo brasileiro.
Na China, durante a epidemia em Wuhan, entre todas as pessoas que testaram positivo, 80% tiveram sintomas leves e puderam ser tratados em casa. O problema é que somente foram testadas pessoas com sintomas e já sabemos que existe um número grande de pessoas que apresentam sintomas tão leves ou mesmo não apresentaram sintomas e sequer foram testadas. Essas pessoas não entraram na estatística dos infectados. Uma possibilidade é que esse número de pessoas seja muito baixo e portanto, o número de infectados seja parecido com o número de testados. 
Mas pode ser que não seja esse o caso. Imagine se para cada testado positivo existam outras dez pessoas que também foram infectadas. Se esse for o caso, em Wuhan não houve somente os 85 mil infectados já detectados, mas sim 850 mil. Se esse número for realmente grande, as taxas de letalidade são muito menores que as estimadas, e a doença é muito menos séria do que imaginamos. Além disso, se esse número for grande, fica mais fácil organizar a saída do isolamento, pois o número de pessoas imunes após o pico pode ser muito maior.
Testes de coronavírus em laboratório
Testes de coronavírus em laboratório Foto: Axel Schmidt/Reuters
No Brasil, onde estamos testando somente os casos sérios, sequer sabemos a quantidade de casos leves que existem, quanto mais os casos que passam desaparecidos, os infectados anônimos. Para descobrir a quantidade total de infectados, a solução clássica usada por epidemiologistas é testar uma amostra da população selecionada ao acaso. Você vai em uma cidade, escolhe ao acaso mil pessoas e testa todas, independentemente de terem apresentado sintomas. O objetivo é descobrir se já possuem anticorpos contra o novo coronavírus. Para isso é necessário usar um desses testes rápidos, parecidos com os exames de gravidez vendidos em farmácia. Em vez de colocar umas gotas de urina, é colocada uma gota de sangue tirada da ponta do dedo. Se a pessoa tiver o anticorpo, aparece a listrinha colorida. Os que tiverem os anticorpos seguramente foram infectados, os que não tiverem não foram infectados. 
Você pode até perguntar para a pessoa se ela teve algum sintoma, mas isso não é o essencial. Feito isso você extrapola esse número para toda a população e calcula a fração infectada. É muito parecido com uma pesquisa de intenção de voto de institutos como Ibope e Datafolha (que poderiam ajudar nessa empreitada), mas ao invés de perguntar em quem a pessoa vai votar, você pica o dedo e o teste “pergunta” para a gotícula de sangue se o indivíduo já teve contato com o novo coronavírus. Da mesma maneira que os institutos de pesquisa acertam as intenções de voto indagando alguns milhares de pessoas, esse estudo vai informar a porcentagem da população que já “viu” o vírus. E se você repetir esse estudo a cada mês vai saber como esse número varia ao longo do tempo e vai poder usar esse dado para planejar a saída do isolamento.
Esses estudos são fáceis de fazer e ainda não foram executados pois nos primeiros meses da pandemia não existiam exames capazes de detectar se a pessoa já havia sido infectada. Como era de se esperar, os primeiros testes desenvolvidos tinham como objetivo saber se a pessoa estava infectada. Só agora testes que detectam os anticorpos produzidos após a infecção ficaram disponíveis. Por esse motivo somente agora os diferentes países estão iniciando estudos desse tipo em seus territórios, se preparando para sair do isolamento.
No Brasil dois grupos de epidemiologistas se organizaram para executar estudos dessa natureza. Um deles em Pelotas no Rio Grande do Sul e outro em São Paulo. O governo incentivou esses grupos a iniciarem esses levantamentos e prometeu fornecer os testes necessários. Mas essa semana surgiu uma barreira difícil de superar. Aparentemente, como já foi anunciado pelo governo federal, os testes importados que chegaram no Brasil não funcionam como esperado. Eles não detectam os anticorpos em todos os pacientes que sabidamente possuem o anticorpo, ou seja, produzem muitos resultados falso negativo. 
Falso negativo ocorre quando o teste não detecta o anticorpo em uma pessoa que sabidamente possui o anticorpo. Já o nível de falsos positivo, quando o teste indica a presença de anticorpos em pessoas que sabemos por outros meios que não possuem o anticorpo, não parece ser tão alto. Ou seja, se os epidemiologistas usarem esses testes, uma grande parte das pessoas que foram infectadas não será identificada (esse problema, é claro, também afeta o uso nos hospitais). Se os resultados falsos negativos forem pouco frequentes, os estatísticos podem corrigir esse erro na análise, mas se forem altos, como parece ocorrer nos primeiros testes importados, não vale a pena iniciar os estudos.
O problema é que a Anvisa, a agência que atesta a eficácia de remédios e testes no Brasil não divulgou os resultados nos quais se baseou para aprovar a importação desses testes. Em tempos normais, a Anvisa não somente investiga os resultados fornecidos pelos fabricantes, mas também refaz esses estudos em laboratórios brasileiros antes de liberar a importação. A suspeita é de que na pressa o Brasil tenha aprovado e comprado gato por lebre. Talvez parte dos testes que estão chegando ao Brasil seja pouco útil ou mesmo inútil. O Ministério da Saúde já avisou sobre a limitação dos testes. Logo saberemos a extensão do problema, pois os hospitais e laboratórios de análise clínica geralmente validam os testes antes de começarem a colocá-los em uso em larga escala.
No meio tempo, esses dois estudos essenciais para termos dados capazes de nos ajudar a montar a estratégia de relaxamento do distanciamento social estão esperando para serem iniciados. Infelizmente ainda vai demorar para descobrirmos quantos brasileiros realmente estão sendo infectados pelo vírus.
Cabe à Anvisa explicar exatamente o que aconteceu na liberação desses testes rápidos. A esperança é que os outros testes que estão sendo importados sejam de melhor qualidade.
*É BIÓLOGO