Júlio Maria
25 de março de 2020 | 21h09
Ao ouvir que “só os mais velhos” estão sujeitos ao novo coronavírus e que a força jovem e criativa da parte dos vivos que interessa à humanidade deve voltar aos trabalhos agora para que o país não derreta, penso logo em como se sentem esses tais “mais velhos” aos quais o suspiro de alívio da frase se refere. Dizer que a doença “só mata velhos” é como dizer “tudo bem, só morre quem está com o pé na cova” ou “quem vai se abalar com a morte de alguém que já viveu tanto?” Não é verdade que o novo coronavírus tenha esse apetite exclusivo por pessoas com mais de 70 anos, como os leitos e os respiradores comprovam todos os dias, mas ainda que fosse, que a doença “só” levasse “esses velhos inúteis para o crescimento do país”, “essa categoria de gente que não faz a mínima falta em um processo eleitoral pelo simples motivo de que eles nem votam mais depois que completam 70 anos”, ainda deveria ser o suficiente para parar um país.
Os velhos se tornaram o peso do mundo, uma massa formada por toneladas de peles flácidas e ossos aerados pronta para ser sacrificada em nome do destravamento da economia. Sem engajamentos sociais que os defendam, até porque o lugar de fala de um líder dessa categoria à parte das questões modernas caberia a alguém que já não consegue mais falar alto e sem a agilidade de raciocínio para os grandes enfrentamentos, os idosos não fariam, como se lê nas casamatas do discurso do ainda presidente Jair Bolsonaro, nenhuma falta. “Isolem os velhos com mais de 60 anos (de um dia para o outro o limite baixou em dez anos) e vamos trabalhar!” Eles, os velhos, olham então para os lados e desconfiam de que, sim, é com eles mesmo. Chegou sua vez e eles mal perceberam. Estão miserável e irremediavelmente velhos. Suas mãos estão enrugadas, sua memória não é mais precisa e os movimentos são cada dia mais lentos. Velhos e dispensáveis, não importa o quão moderno tentaram ser nos últimos anos fazendo vídeo chamada para os netos aos domingos ou conversando com os filhos sobre o novo disco do Djonga. Se redimindo das durezas do passado deixando o neto dormir com a namorada em casa ou elogiando as tatuagens do filho no pescoço. Eles não fazem mais falta.
Do brilho da juventude ao cuspe do presidente, foi tudo muito rápido, como mostra uma retrospectiva resumida da vida média de um senhor de 80 anos pronto para ser jogado no quarto dos fundos. Entre os zero e os dez anos, não há mais lembranças, apenas cheiros e sensações. Até os 18, os fatos não são muito precisos e começam a surgir algumas fantasias. Não diga mentiras, mas fantasias, aquelas verdades que se esqueceram de acontecer. A partir de então, só fica o que o tempo não apaga. O primeiro elogio na sala de aula, o primeiro beijo na saída da escola, o primeiro e muitas vezes único tremor de pernas diante de um grande amor. O primeiro sexo, o primeiro LP, o aniversário inesquecível, o dia em que Elis Regina morreu. Quando vêm a linha dos 40 para os 50, os velhos se calam. A fase em que a vida para de dar e começa a tirar é lembrada em silêncio. A mãe se foi, alguns amigos partiram, os filhos se distanciaram e os chefes os trocaram por mão de obra jovem e barata.
Mas os 60 chegam redentores e a vida parece renascer nos netos. Eles trazem a alegria de uma segunda paternidade desprovida de preocupações e inundam as casas de um amor novo e vibrante. Os netos, esses mesmos que devem seguir suas vidas normais nas escolas sem mais poder passar perto do quarto dos fundos para não contaminarem ele, o velho. Há um momento da vida em que morrer por um vírus não é o problema. O que dói é ser assassinado antes de tudo acabar.
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